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Segunda, 23 Março 2020 22:20

“Se este vírus entrar num dos musseques, não há forma de o travar em Angola”

Passageiros vindos de Portugal ficaram de quarentena em condições "desumanas". OMS confirma falta de ventiladores e fala em situação "difícil". Ao todo, há 3 casos confirmados de Covid-19.

As imagens não enganam: camas ainda a serem montadas nas rua, quartos cheios de gente a menos de um metro de distância. Foi esta a situação com que se depararam alguns angolanos que chegaram a Luanda na noite do passado sábado, vindos de Portugal, e que foram de imediato levados para o centro de quarentena de Calumbo. Aterrados no Aeroporto 4 de Fevereiro, foi-lhes medida a temperatura, retirado o passaporte e colocados em autocarros. Hora e meia depois, chegavam ali e compreendiam que era esperado que ali ficassem durante as próximas duas semanas em isolamento — a fim de evitar a propagação do novo coronavírus em Angola.

“As pessoas estavam completamente umas em cima das outras. Se alguém estivesse contaminado e espirrasse, infetava os outros de certeza. As portas tinham de ser abertas porque as ventoinhas não chegavam para o calor, os mosquitos entravam… Era uma aberração. Era desumano”, relata ao Observador um cidadão com nacionalidade portuguesa e angolana que foi levado para o Calumbo nessa noite de sábado, depois de aterrar vindo do Porto. “Se houvesse algum infetado ali, no dia seguinte não seria um, seriam uns 300 ou 400. Ia ser pior a emenda do que o soneto”. Segundo as estimativas do luso-angolano, que prefere não se identificar, estariam ali cerca de 400 pessoas. Para cada 24 camas havia apenas um chuveiro e três sanitas.

“À chegada, as pessoas vindas do voo de Lisboa, que já lá estavam, gritavam para nós ‘Não desçam do autocarro!’, mas nós não percebíamos bem porquê”, conta agora, quase 72 horas passadas, a partir da segurança de um quarto de hotel onde está agora acomodado. A situação foi resolvida depois de vários dos angolanos que ali foram colocados terem protestado e denunciado a situação nas redes sociais. As fotografias das camas a serem montadas ao relento e os áudios dos viajantes isolados a relatarem a falta de condições sanitárias circularam por muitos e chegaram a sites como o Maka Angola. “Não havia espaço para todos. Puseram-nos 6 a 15 em cada quarto. Muitos de nós acabámos por dormir ao relento ou sentados nos autocarros. Há muitos mosquitos aqui e com estas condições estamos expostos a outras doenças”, relatava uma das angolanas ouvidas pelo projeto do ativista Rafael Marques.

Também o luso-angolano ouvido pelo Observador acabou por dormir ao relento. Juntamente com outros descontentes no Calumbo, assinou um documento a denunciar a situação. A pressão, aliada à chegada da situação aos media, acabou por produzir resultados. Os passageiros vindos de Portugal acabaram por ser transferidos para um hotel, ao final do dia de domingo. A decisão foi tomada no mesmo dia em que a Casa Civil admitiu ter havido “constrangimentos” na acomodação no centro de quarentena de Calumbo, num comunicado enviado às redações. No mesmo documento era ainda esclarecido que o Presidente João Lourenço nomeou o general e chefe da Casa de Segurança da presidência Pedro Sebastião para coordenar a comissão de luta contra a Covid-19 — responsabilizando assim alguém mais bem colocado na hierarquia do Estado angolano para responder a este e  a outros problemas.

“Houve inicialmente alguns problemas com a logística destes viajantes, mas que já foram superados por essa altura”, garantiu esta segunda-feira a ministra da Saúde angolana, Sílvia Lutucuta, em conferência de imprensa aos órgãos de comunicação social do país. “Foram feitos inicialmente contactos com a rede hoteleira IU, mas não foi possível na altura [alojar lá as pessoas]”, justificou.

Dos centros de quarentena cheios às buscas pelos que furaram a quarentena em casa

O caso do Calumbo tornou-se emblemático na imprensa angolana de um possível desnorte por parte das autoridades angolanas para lidar com a Covid-19, que já matou mais de 16 mil pessoas em todo o mundo. Ao todo, Angola tem neste momento três casos confirmados de infeção pelo coronavírus, mas nenhum inspira cuidados, de acordo com as informações fornecidas pela ministra na tarde desta segunda-feira.

Isso não significa, porém, que o país está fora de perigo. Ainda no início desta pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) colocou de imediato Angola numa lista de 13 países de prioridade máxima em África, devido às fortes ligações com a China, visto viverem no país cerca de 250 mil cidadãos chineses. Passada a primeira fase e com Angola a conseguir impedir a chegada do vírus enquanto este estava apenas na China, não conseguiu impedir a sua propagação quando este veio da Europa — os três casos registados neste momento são três cidadãos angolanos que vieram todos de Portugal.

E ninguém sabe como pode ser a evolução do vírus nos países africanos. Subsistem dúvidas sobre se poderão lidar melhor com a Covid-19 devido às altas temperaturas, mas não há certezas a não ser que a maioria dos sistemas de saúde do continente são mais frágeis do que os europeus — e a Europa já conta com mais de dez mil casos. “Não fazemos ideia de como a Covid-19 se vai comportar em África”, alertou a investigadora Glenda Gray à revista Science. O presidente da OMS, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, foi ainda mais longe: “África tem de acordar, o meu continente tem de acordar”, pediu.

Angola garante estar acordada, depois de alguns ziguezagues iniciais. As más condições no centro de quarentena de Calumbo foram agora denunciadas e corrigidas, mas não são, de todo, novidade. “As equipas de trabalho não estão bem formadas nem informadas sobre a epidemia do coronavírus. Estão a juntar quatro pessoas ou mesmo oito num só quarto”, denunciara já em fevereiro uma estudante vinda da China à versão portuguesa da emissora alemã Deutsche Welle.

Ainda antes da situação deste fim-de-semana, o governo de João Lourenço hesitara no tipo de medidas de quarentena a aplicar aos passageiros vindos da Europa. A 18 de março, registou-se uma situação tensa no Aeroporto de Luanda, com vários dos passageiros revoltados. “Houve um pequeno tumulto e indecisão sobre se iríamos para quarentena institucional no Calumbo ou não”, conta ao Observador o psicólogo Nvunda Tonet, que estava presente depois de ter aterrado num voo vindo de Lisboa. “Havia muita confusão, muito desespero, porque as pessoas já sabiam de antemão que no centro de Calumbo não havia condições nem técnicas nem logísticas para receber aquelas 300 pessoas”.

Para além disso, e de acordo com a imprensa angolana, terá havido casos de pessoas a quem foi concedida a exceção de poder fazer a quarentena na sua própria casa — incluindo ao conhecido líder da oposição Abel Chivukuvuku —, o que revoltou alguns dos passageiros que se aperceberam da situação. A decisão final foi por isso de permitir a todos os que ali estavam que assinassem um termo de responsabilidade e ficassem em quarentena domiciliária.

Uma das pessoas que fazia parte deste contingente que pôde ir para casa era Osvalso Macaia, administrador da Sonangol que acabaria por ser identificado como um dos três casos infetados no país. Contudo, segundo uma fonte da petrolífera ouvida pela agência Lusa, Macaia só começou a apresentar sintomas um dia depois de ter aterrado em Luanda.

Ao mesmo tempo, foram surgindo relatos de que algumas dessas pessoas em isolamento não estavam a cumprir a quarentena, sendo inclusivamente fotografadas nas ruas e em eventos, o que levou a ministra da Saúde a ameaçar enviá-las para o centro do Calumbo: “Não haverá mais avisos, quem reside no Cazenga e é encontrado na ‘Baixa’, a polícia vai pegar em si e levar para o centro do Calumbo, não haverá explicação possível nem tolerância”. Segundo a Voice of America, a polícia em Benguela chegou mesmo a procurar o paradeiro de cerco de 30 pessoas chegadas de Lisboa para garantir que estavam a cumprir as regras da quarentena.

“Os órgãos de segurança têm ido buscar pessoas que estão na rua e não estão a cumprir. Tínhamos mesmo de tomar esta medida”, declarou a ministra da Saúde esta segunda-feira para justificar a decisão de colocar os novos passageiros vindos de Portugal no centro de Calumbo. “Lamentamos o que ocorreu, não era essa a nossa intenção”, assegurou, reforçando que “o mais importante é que eles já estão acomodados em condições dignas”. Ao todo, segundo o Ministério, há agora 463 as pessoas em quarentena.

Os rumores da “resistência” da pele negra ao vírus e do “vento tóxico”

A decisão de colocar em quarentena quaisquer pessoas vindas de Portugal ou outros países com casos de Covid-19 foi tomada em conjunto com uma série de outras medidas previstas no decreto presidencial, assinado por João Lourenço a 18 de março. Estão agora suspensos “todos os voos comerciais e privados de passageiros de Angola para o exterior e vice-versa por quinze dias” e “proibida a realização de eventos públicos como cultos religiosos, actividades culturais, recreativas, desportivas, políticas, associativas, turísticas, privadas e de qualquer outra índole, com a aglomeração de mais de 200 pessoas”.

São medidas que Javier Aramburu, representante da OMS em Angola, considera serem indispensáveis, como explicou ao Observador: “Ao início o foco estava na chegada de pessoas vindas da China e isso estava correto. Isso provavelmente atrasou a entrada do vírus aqui, mas agora é claro que já cá está e é necessário levar a cabo medidas para fazer uma segunda prevenção.” O principal objetivo, explica, deve ser “a procura de novos casos”. “Existe a possibilidade de outras pessoas que vieram de Portugal terem trazido o vírus. O número de casos pode aumentar e é por isso que o Ministério da Saúde está a tentar acompanhar todos os casos que chegaram a Luanda.”

Para além disso, explica Aramburu, pode também haver casos assintomáticos de pessoas que vieram de outros países. Portanto, o foco deve estar colocado na prevenção e na informação à população sobre quais as melhores formas de prevenir o vírus. Num país onde a taxa de literacia está à volta dos 70%, a desinformação ainda grassa. Em Luena, no Moxico, houve rumores de que um “vento tóxico” estava a disseminar o novo coronavírus, assustando a população. Há também pessoas que se sentem imunes à infeção, por terem ouvido a falsa teoria de que os negros não são afetados pela Covid-19.

E a falta de informação levou inclusivamente já a alguns episódios de violência. Um deles foi contado ao Maka Angola por Manuela Silva, uma das passageiras levadas do Aeroporto de Luanda para o Calumbo: “No trajeto, com sirenes e batedores, fomos apedrejados na via como assassinos, como estando a trazer o vírus para matar os angolanos”, denunciou.

Também um jornalista angolano questionou esta tarde a ministra da Saúde sobre os relatos que dão conta de um espancamento a um cidadão português na província de Bié, por suspeitas da população de que ele teria levado o vírus para lá. A ministra Lutucuta não confirmou nem desmentiu a informação, pedindo apenas aos angolanos que não “estigmatizem”.

O Observador entrou em contacto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que afirmou não ter conhecimento de tal agressão: “O Consulado-Geral de Portugal em Luanda contactou as autoridades policiais angolanas que não reportaram casos de agressões a portugueses na província de Bié”, declarou fonte oficial, acrescentando que não foi comunicado ao Consulado nenhum relato de “agressões” a cidadãos nacionais. “O Consulado continuará a acompanhar atentamente a situação da comunidade portuguesa em Angola”, acrescenta a tutela.

Seja ou não verdade, o psicólogo Nvuta Tonet sublinha que é necessário “reformar as informações” que são dadas à população para evitar incidentes de violência e desinformação. “É necessário construir uma equipa ad hoc com médicos, psicólogos, professores, outros profissionais, para fazer o trabalho de sensibilização. Principalmente com os estudantes, com as pessoas que vendem nos mercados, com os que não falam português, com os que não têm acesso nem à televisão nem à rádio… Falta mesmo informação”, afirma.

Cinquenta ventiladores para uma população de 30 milhões

Aquilo que também falta, de acordo com a OMS, é capacidade de resposta do sistema de saúde angolano a uma possível epidemia de Covid-19, caso esta se implante com força no país. “Acabei de ter uma reunião com o Ministério da Saúde, onde fiquei a saber que existem 110 camas de cuidados intensivos no país e as estimativas de casos, em caso de epidemia, ultrapassam esse número. Portanto é claro que é necessário reforçar o sistema de saúde, não só em Luanda, mas no país todo”, diz ao Observador Javier Aramburu. Em Angola vivem quase 30 milhões de pessoas, dos quais quase três milhões estão concentrados em Luanda.

“Por um lado, temos de aplicar a contenção ao máximo; por outro, as unidades de saúde têm de aumentar o número de camas e ventiladores disponíveis”, acrescenta, falando em cerca de “50 a 60” ventiladores disponíveis no país neste momento. “Neste momento a situação é difícil. Mas se fizermos estas duas coisas e garantirmos que as pessoas têm acesso aos cuidados de saúde, então é possível conter a epidemia.”

Questionada sobre o número de ventiladores existentes em Angola, a ministra da Saúde escusou-se a referir um número, mas garantiu que foram comprados “21 ventiladores” nos últimos dias. Relembrando que “nenhum país pode dizer que está 100% preparado” e que “ninguém tem ventiladores em quantidade suficiente nesta pandemia”, Sílvia Lutucuta reconheceu que não pode garantir que haverá ventiladores suficientes no país, bem como um número suficiente de técnicos que os saibam utilizar. “Nós não temos assim tantos, mas continuamos a dar formação de forma acelerada aos nossos profissionais”, disse, acrescentando que por tudo isto é necessário colocar o foco “na prevenção”.

Isso mesmo dizem muitos médicos angolanos, que temem o colapso do sistema de saúde em caso de crescimento exponencial da epidemia do país. “A OMS reconhece que o nosso sistema de saúde é debil e por isso Angola está numa situação de alto risco”, declarou o médico Nelito Lopes à Voice of America. “Sinceramente, estou apreensivo, porque caso venhamos a ter um registo, não estou a ver capacidade técnica para fazermos o que os outros estão a fazer pelo mundo”, acrescentou à mesma rádio outro colega, Xavier Jaime.

E os problemas não se ficam por aqui. “A capacidade para confirmar casos é muito importante neste momento. O país tem alguns kits de teste que vieram da China, mas é preciso mais”, Aramburu. “Também é preciso mais fatos de proteção para os profissionais de saúde, isso é claro. A segurança é uma das coisas mais importantes para impedir a transmissão entre o pessoal dos hospitais”, acrescentou o responsável da OMS em Angola ao Observador.

Quarentena geral? “Tudo será feito a seu tempo”

Sabendo destas limitações, e sublinhando que “nenhum país está preparado para uma fase aguda de transmissão”, o representante da OMS reforça que o foco tem de ser colocado nas medidas de contenção. “Aqui já se fecharam as fronteiras, já se fecharam as escolas, já se restringiram os ajuntamentos públicos. Aquilo que falta agora é um isolamento geral, eles sabem que essa medida é necessária”, explica Aramburu. “A OMS já disse que, se não forem tomadas as medidas necessárias agora, poderemos ter um cenário muito difícil daqui a duas semanas.”

Esse isolamento geral, contudo, continua por decretar. À ministra da Saúde foi colocada a questão sobre se faria sentido decretar o estado de emergência no país para obrigar a população a ficar em casa, mas a responsável pela tutela limitou-se a dizer que “tudo será feito a seu tempo” e que é necessário haver “suporte legal” para uma decisão desse tipo. Para a semana há um Conselho de Ministros marcado, onde a decisão pode vir a ser tomada.

Mas, mesmo que tal venha a ser feito, continua por explicar como irá ser aplicado o isolamento total num país com as características de Angola, que incluem desde uma megalópole de milhões como Luanda até zonas remotas onde parte da população pode nunca ter ouvido sequer falar de um tal de novo coronavírus.

Nvuta Tonet acredita que a contenção está a funcionar e que não será preciso chegar a tanto: “Os três casos estão controlados, têm tido reações esperadas e, ainda que tenhamos outros casos, vão ser controlados. Não acredito num contágio massivo”, declara ao Observador. Com as aulas e as consultas interrompidas, o psicólogo aproveita para “acabar de ver as séries da Netflix” que tem atrasadas e para ler livros de autores como Vargas Llosa ou Mia Couto, aproveitando esta “espécie de ano sabático”.

Outros, como o cidadão luso-angolano que falou ao Observador sobre a sua experiência no centro de Calumbo, não estão tão otimistas. “Em Angola as pessoas não têm forma de ficar em casa, porque não terão meios de subsistência. O país não está minimamente preparado para uma quarentena”, afirma.

Nos próximos 14 dias, este homem manter-se-á fechado naquele quarto de hotel em Luanda, sem ver ninguém ao vivo, com as refeições a serem-lhe deixadas à porta e um balde do lixo para ir enchendo e colocando do lado de fora. Sobra-lhe muito tempo para pensar no que pode acontecer ao seu país se o vírus se propagar como em Portugal, de onde veio: “Se este vírus entrar num dos musseques, não há forma de o travar em Angola. Será um caso desesperante”, prevê. OBSERVADOR

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