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Quarta, 24 Junho 2020 14:48

PGR de Angola é parte do sistema de partido estado que instituiu a corrupção - Samakuva

Nesta abrangente entrevista por email, a primeira do ex-presidente da UNITA desde que há cerca de seis meses deixou a liderança do histórico partido do "Galo Negro", Isaías Samakuva garante que não parou de pensar o País e muito menos está a pensar abandonar a política, aliás, diz mesmo que vai voltar ao Parlamento, mas, para já, está a organizar os seus arquivos pessoais depois de ter tirado um mês de férias, o que já não fazia "há mais de 40 anos". A publicação integral, agora, online, decorre da sua importância enquanto documento para "memória futura".

Não está arrependido de deixar a liderança do partido e avança que saiu no tempo certo, cumprindo o "plano director" que, ainda na adolescência, traçou para a sua vida. Mas tem pena de não ter conseguido alguns objectivos durante os 17 anos em que liderou a UNITA, e um deles foi não ter conseguido ganhar eleições.

Deixa conselhos ao Presidente da República, como este: "As pessoas estão sempre acima dos mercados e a economia só serve para os vivos e não para os mortos" e faz questão de detalhar o que falhou no processo de construção da Angola independente, nos últimos 45 anos, onde o MPLA surge como o grande vilão, a quem acusa de se ter apropriado do Estado para se servir e não para responder aos anseios do povo.

Mas também aborda os episódios mais melindrosos na história do seu partido, considerando mesmo que "não será demais incluir estes casos no processo actual", que envolve a Lei do Regime Especial de Justificação de Óbitos Ocorridos em Consequência de Conflitos Políticos entre 1975 e 2002.

Sobre o combate à corrupção, a sua posição é clara. Não acredita que "o sistema promotor da corrupção e os que dele viveram e vivem sejam capazes de o combater e desmantelar com eficácia".

E lança um desafio a João Lourenço em forma de interrogação: "Quer salvar Angola ou o MPLA?"

Quanto ao futuro, que também passa por esta rara entrevista, leva-o a dizer sem titubear: "Enquanto o Titular do Poder Executivo do Estado, seja ele quem for, não se libertar do partido que capturou o Estado não haverá progresso sustentável, não haverá mudança".

Para ser melhor que o passado, o futuro de Angola, visto pelos olhos de Isaías Samakuva em tempo de severa crise económica engrossada pela pandemia da Covid-19, deve ser "mais de diálogo do que de recriminações".

Do alto da sua experiência política, assente em várias décadas, adverte: "Quem pensar e agir doutro modo, pagará um preço elevado, porque o povo já não se deixa enganar mais...".

 

 

Ao fim de seis meses fora da chefia da UNITA, e depois de cerca de 17 anos na liderança, é necessário um esforço para mudar hábitos e encontrar novos interesses?

Há muita coisa que podemos fazer por Angola para além do exercício da presidência de um partido político. E já estamos a fazer. Desde jovem que tracei o programa director para a minha vida, com objectivos e alvos claramente definidos. Abracei a causa da independência de Angola e decidi consentir todo o tipo de sacrifícios para dar o meu contributo na missão de salvar Angola e os angolanos dos opressores estrangeiros. Compreendi depois que era preciso fazê-lo também em relação às forças oligárquicas que capturaram o Estado independente e se apoderaram da economia para subjugar os angolanos. Sinto que tive o privilégio de contribuir para a edificação da cidadania angolana e para a construção dos alicerces para a paz democrática no País e na África Austral.

Tarefa quase interminável...

Continuo um cidadão activo, com os mesmos interesses, a mesma dinâmica, os mesmos objectivos. Portanto, tirando os constrangimentos que a Covid-19 nos impõe, não tem sido necessário fazer esforço suplementar para me manter ocupado. Há muita coisa por fazer. Um combatente pela emancipação de África não se aposenta da luta pela construção da Nação angolana e pela dignificação dos africanos.

Não se aposentou nem se esperava que assim fosse. Que caminhos tem seguido?

Continuo a trabalhar na implementação do meu programa director. Dispensei um mês para férias; as primeiras em mais de 40 anos! Depois passei algum tempo na rearrumação e reclassificação dos meus arquivos pessoais acumulados ao longo da minha vida. Documentos, livros, fotografias, vídeos, etc., contam por si a minha história e muitos deles são testemunhos indesmentíveis de factos da História nacional. Com base neles, comecei a materializar um dos pontos do meu programa previstos para a fase em que me encontro e que se traduz no registo, do meu ponto de vista, sobre vários aspectos com que me "cruzei" na minha vida até aos dias que correm.

Muitos projectos...

Vários. Pessoais, familiares, sociais e políticos, naturalmente.

Está a escrever as suas memórias?

Sim. Já estou a fazê-lo.

Como olha hoje para o País?

Com um sentimento de profunda frustração. Vemos um País dividido entre os oligarcas que delapidaram os recursos nacionais e os governados, empobrecidos por quem os devia proteger e prestar contas. Vemos um País que precisa de um diálogo institucional, franco, abrangente e aberto para um novo começo.

Começar de novo...

Sim. O País que precisa de julgamentos, mas que precisa mais de diálogo do que de recriminações. Precisa mais de patriotas dedicados e prontos para servir o povo em qualquer parte do País do que técnicos engravatados que, mesmo sendo jovens, evidenciam possuir os mesmos vícios da cultura da governação selectiva e discriminatória.

Vemos um País que precisa desesperadamente de substituir a ganância de grupos pela solidariedade nacional e pelo patriotismo, pois este potencia a inovação na resolução dos problemas, promovendo novas formas de manifestar a solidariedade nacional e cimentar a coesão social, factores de unidade dos povos e do enriquecimento das nações.

Para isso se fez a independência, não foi?

Desde a minha juventude, sempre sonhei com uma Angola independente, o que para mim significava desenvolvimento, progresso, liberdade - no seu real e vasto sentido - e bem-estar...

O ideal de tantos...

Quando via filmes ou documentários sobre os actos heróicos de personalidades europeias e americanas que concretizaram a independência e o desenvolvimento dos seus países e do mundo que temos, sempre pensei que nós também poderíamos alcançar a nossa "independência", garantindo ao nosso povo, nós mesmos, escolas, hospitais, habitação com "luz eléctrica", água canalizada, transporte e outras coisas que via nos filmes e lia sobre o mundo já desenvolvido. Achava que nós próprios também conseguiríamos fazer o mesmo desde que nos livrássemos dos estrangeiros opressores.

Essa expectativa não se concretizou?

Quando olho para o nosso País hoje e para grande parte dos países africanos, ainda me confronto com situações que, na minha maneira de ver, só persistem por causa do nosso egoísmo, do nosso egocentrismo e da nossa miopia... deliberada!

Está a dizer que...

Vejo que a nossa Angola que com tantos recursos naturais e humanos, com tantos bilhões de dólares resultantes da exploração dos referidos recursos naturais durante quase uma década, ainda tem de contar com a caridade dos seus cidadãos e da comunidade Internacional para dar de comer aos seus concidadãos ou para poder fazer face a uma pandemia como a da Covid-19, 45 anos depois da sua independência!...

Por isso fala de um recomeço?

Quando vejo isso tudo, ou seja, quando vejo o nosso país e a nossa África andar, por tudo e por nada, de mão estendida a pedir ajuda aos mesmos de quem nos quisemos libertar, a minha frustração é profunda!... Acho que o sonho da independência efectiva falhou e que, por isso, precisamos de perspectivar um novo começo. Temos de virar a página e com as lições do passado, começar um novo rumo para construirmos a Nação.

É diferente ver Angola enquanto líder do maior partido da oposição e agora, ou sente os problemas da mesma forma?

Vejo Angola da mesma maneira e sinto os seus problemas com a mesma intensidade, agora talvez numa perspectiva mais nacional e mais inclusiva. Sinto-me num outro patamar, acima das disputas e limitações político-partidárias.

Mas a luta é a mesma ou...

A responsabilidade natural que temos é de alicerçar a construção da Nação e realizar os angolanos. Nós lutamos por Angola e pelos cidadãos angolanos todos. Não lutamos por uma independência qualquer, mas pela INDEPENDÊNCIA TOTAL DE ANGOLA. Independência total significa INDEPENDÊNCIA para todos os filhos desta terra, não apenas para alguns. Significa ter os cuidados primários de saúde para os filhos da terra garantidos pelo Estado, sem pagar. Significa, por exemplo, que todas as crianças devem ter assegurado pelo Estado o acesso ao ensino obrigatório, sem pagar. Se o Estado não tem escolas suficientes, pode contratar os colégios privados, mas os angolanos não deviam pagar nada para as suas crianças estudarem pelo menos durante a instrução primária e secundária. É o que diz a Constituição da independência, a nossa Constituição.

Independência total significa também ter os cidadãos a resolverem eles mesmos os seus próprios problemas locais, através de órgãos eleitos pelas comunidades, com autonomia do poder central, colaborando com o Estado na implementação de programas e projectos para a saída da crise e para o desenvolvimento sustentável e harmonioso de todos os Municípios que constituem o País. Portanto, não há independência total efectiva sem as autarquias locais em pleno funcionamento.

Mais uma frente na qual está empenhado, a das autarquias?

Sinto ser necessário continuarmos a trabalhar na construção da democracia angolana. Temos de conferir sentido prático à democracia para que o povo a relacione com os seus benefícios práticos e materiais. Temos de encontrar mecanismos práticos e eficazes para que os mais desfavorecidos, os menos equipados, que constituem a grande maioria dos cidadãos, sintam que o Estado independente de Angola é a sua árvore protectora, que os ajuda a combater a fome, o analfabetismo, o paludismo e a pobreza. De igual modo, os mais afortunados devem poder ver no Estado um parceiro fiel ao seu serviço.

E a realidade verificável hoje, o que é que demonstra?

É revelador o facto de, 45 anos depois da independência e 18 anos depois de conquistada a paz, ter ficado claro que os que eventualmente traíram o ideal da independência também defraudaram a História, assaltaram as finanças públicas, subverteram a democracia, institucionalizaram a corrupção e capturaram o Estado da Angola independente para fins privados.

Há sempre lições a retirar e conclusões a...

Este fenómeno revela que um antigo combatente pela liberdade pode deixar de ser um patriota para se tornar alguém capaz de subjugar a Pátria, hipotecar o País e roubar o futuro da Nação. É doloroso constatar isso!

Qual é a lição mais importante a tirar daí?

A lição que tiramos é que temos de estar todos vigilantes, fazendo regularmente uma auto-avaliação do nosso desempenho pessoal como políticos e dirigentes. Temos todos e cada um de trabalhar para reverter este quadro desolador e resgatar a cidadania para se devolver o futuro às crianças. Cada um na posição em que se encontra.

O Parlamento é um dos palcos para essa transformação. Pensa regressar ao Parlamento para reassumir o lugar de deputado para o qual foi eleito?

Sim. Vou regressar ao Parlamento.

A crise que o País está a atravessar, com a descida do valor do crude a que se soma a de saúde pública por causa da pandemia da Covid-19, mudou muito aquilo que era o futuro imediato, como, por exemplo, a forte possibilidade de as eleições autárquicas não terem lugar este ano mas sim apenas em 2022, em conjunto com as gerais. Como está a observar a situação?

Observo a situação com muita preocupação. A crise generalizada que vivíamos antes mesmo da pandemia da Covid-19 agudizou-se de tal maneira que ninguém pode perspectivar a sua evolução nem o seu fim num curto prazo. A ineficácia das políticas sociais e económicas ensaiadas não nos permitiram alcançar os objectivos do Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 2013-2017. De igual modo, as sucessivas recessões económicas, a corrupção institucionalizada e a pandemia não nos permitirão alcançar os objectivos nem executar os programas do Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018-2022. O PIM também não vai resolver os sistémicos problemas do País nem a concentração de recursos na pandemia do coronavírus vai permitir alcançar os objectivos preconizados no Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2012-2025. O OGE 2020 já não é exequível.

Não vemos programas concretos, nem ideias concretas para lidar com a desnutrição crónica, que afecta mais de 15% das crianças menores de 5 anos. Não vemos determinação para proceder à reestruturação efectiva do sistema de educação e ensino.

Mas tem havido diálogo, ou, pelo menos, mais diálogo...

O diálogo com uma parte pouco representativa da sociedade não é suficiente para inspirar ou produzir políticas públicas eficazes para combater o desemprego estrutural que empobrece mais de 50% da população economicamente activa nem para alterar o nível de centralização dos principais poderes públicos num órgão singular de soberania que governa por decreto, sem consensos, sem contrapesos nem sindicância efectivos.

E esse é o grande problema ou um dos...

O principal problema do País, do meu ponto de vista, continua a ser a captura e a subversão do Estado constitucional por um Partido estado que decidiu controlar o espaço público sozinho, subvertendo a democracia e estruturando a economia política de forma a garantir que uma oligarquia domine Angola e galvanize as desigualdades para subjugar os angolanos.

Porém, os angolanos estão maduros, estão cansados de sofrer, estão saturados de promessas e reclamam, agora cada vez mais alto, um novo começo.

Este é um momento de grande de transformação e preocupação. Como responder a tantos desafios?

Estou muito preocupado porque vivemos um contexto delicado, similar àqueles momentos históricos em que as Nações precisam de ser presididas e movidas pelos valores do humanismo, da solidariedade e da inovação, devendo o Estado romper com o passado e passar a concentrar mais recursos na educação e na saúde dos cidadãos do que na defesa e segurança das elites que governam. Acho mesmo que, neste momento, Angola precisa mais de coesão nacional do que competição política ou económica. Precisa de privilegiar o patriotismo e a cidadania e não a partidocracia e a hegemonia. Na busca de um novo rumo, o País ainda ficou a meio caminho...

A UNITA continua a defender eleições autárquicas em todos os municípios. Se o Governo do MPLA rejeitar, qual deve ser a posição da UNITA?

Foi esta a decisão do XIII Congresso e acho que não temos razões para mudar de posição. Ouve-se, de muitos sectores, a pergunta sobre o que a UNITA faria se o Governo/MPLA rejeitar aquilo que a Constituição defende, ou seja, a implementação do sistema autárquico simultaneamente em todo o país. Ora, baseado na experiência, até é possível que o MPLA pisoteie mais uma vez a Constituição e despreze a vontade do povo angolano implementando as autarquias apenas em alguns municípios. Aliás, já vemos sinais nesse sentido. Porém, é bom que saibam que, no passo a seguir, vão ser seriamente penalizados pelos eleitores. Os angolanos amadureceram e, hoje, uma grande maioria deles já sabe o que quer e já não aceita mais que lhe imponham o que à partida já é visto como erro. Nós continuaremos a defender a Constituição e a pugnar pela autonomia local dos angolanos, de todos os angolanos, ao mesmo tempo e em todos os municípios. Esta parece-nos ser a vontade geral.

O seu sucessor, o presidente Adalberto da Costa Júnior, praticamente no arranque da sua presidência do partido, levou com uma das mais graves crises desde o fim do conflito armado, o seguimento da que resultou da queda do valor do petróleo em 2014 a que se somou a crise gerada pela pandemia da Covid-19. Não deve ser fácil. Tem pena de não estar na política activa neste importante período histórico para Angola e para o mundo?

Nunca me passou pela cabeça estar em tudo em todo o tempo. Cada fase da História da Humanidade teve os seus prós e os seus contras; os seus problemas e as suas oportunidades... Acho que deixei a posição de dirigente máximo da UNITA na altura certa. Voluntariamente e fiel ao programa director da minha vida. Por outro lado, acho que está à medida do homem e depois de Deus não há nada maior que ultrapasse a capacidade do homem. Depois de Deus, o homem está e estará sempre acima de tudo o que existe. Portanto, a Covid-19 vai, como já está, causar muitos problemas ao homem mas este acabará por dar a volta e impor-se, voltando assim à sua vida normal.

Tem falado com o actual líder? Tem aconselhado o presidente Adalberto?

Temos falado quando é necessário.

Que relação têm?

Boa. De companheiros e colegas de longa data.

O que faria diferente dele perante este cenário de grave crise económica e social? Alguma vez se arrependeu de não ter tentado uma derradeira candidatura?

Tenho dito que deixei a função de dirigente máximo do partido em que milito na altura certa, de forma voluntária e fiel ao programa director da minha vida. Não tenho razões para arrependimentos. Também nunca me considerei o melhor de todos, embora procure sempre fazer o melhor de mim mesmo. Portanto, respeito o que os outros fazem desde que o façam nos marcos das normas estabelecidas.

Consegue encontrar alguma analogia entre o actual momento e algum período da sua presidência?

Acho que os momentos que a história regista, fáceis ou difíceis, têm especificidades próprias. Por isso, não são facilmente comparáveis. Eles são diferentes na natureza e nos seus elementos constitutivos. A natureza dos problemas causadores de crises e as circunstâncias em que elas ocorrem, são muito diferentes e, por conseguinte, difíceis de comparar. Do outro lado, acho que à medida que o País for amadurecendo os angolanos vão-se habituar, confortavelmente, aos vários estilos de liderança dos seus servidores públicos, dentro e fora da administração do Estado.

E sobre a actuação do Presidente da República, entende que está à altura das exigências? O que faria diferente? Tem conselhos para João Lourenço melhor lidar com a situação?

O Presidente João Lourenço, ao adoptar como sua a Agenda de Mudança da UNITA, demonstrou coragem. Mas se não avançar com determinação no sentido da verdadeira mudança poderá ser absorvido pelo forte movimento da cidadania em prol da verdadeira mudança.

Temos escutado muitas ideias sobre como lidar com a situação presente. Umas boas, sensatas e práticas, motivadas pela vontade e interesse de preservar a vida humana e o bem comum; e outras motivadas apenas por interesses materiais de pessoas ou grupos de pessoas. Acho que o importante, para o Presidente da República, é actuar em dois eixos: 1) cultivar o hábito de escutar e dialogar seriamente com os diversos sectores da nossa sociedade, incluindo os aparentemente não importantes, e depois (2) oferecer liderança, tendo o cuidado e a habilidade de identificar ideias mais sensatas, práticas, despidas de interesses sectários e que priorizem a protecção e preservação da vida humana. Procurar manter e desenvolver a economia é positivo, mas esta precisa, antes de mais, de cidadãos que a sustentem e que dela possam beneficiar. As pessoas estão sempre acima dos mercados e a economia só serve para os vivos e não para os mortos...

Uma velha reivindicação do seu partido...

Quem viu os programas do Governo Inclusivo e Participativo (GIP) que a UNITA propôs ao País nas duas últimas eleições, poderá constatar que para nós da UNITA, Angola vive há muito uma situação de emergência nacional e de calamidade pública, não declarada formalmente. Só que não era sentida pelas elites governantes que se sentiam imunizadas pelo dinheiro roubado do erário público.

Agora, nesta crise, está a ser diferente...

Hoje está todo o mundo contaminado e talvez por isso o executivo tem mesmo de investir aqui no nosso sistema de saúde. De facto, em 2012 e, sobretudo, em 2017 a UNITA propôs aos angolanos sete medidas de emergência nacional para tirar o País da crise e alicerçar o futuro. A segunda dessas medidas envolvia a estruturação, execução e controlo, a nível regional, de um Programa Integrado de Emergência Nacional para resolver num curto prazo os cinco principais problemas nacionais. O programa visa atacar decisivamente as suas raízes através de novas políticas de recuperação económica e desenvolvimento social nas áreas da educação, saúde, habitação, emprego e segurança social. Os problemas ligados a estas cinco áreas da governação seriam classificados e tratados como "questões de segurança nacional" com prioridade absoluta na afectação de recursos.

E é desta que...

Felizmente, a pandemia do coronavírus ajudou o Executivo a despertar para o estado calamitoso da saúde em Angola. Os comediantes diriam a propósito que "falta um corona para a educação" e acrescentarei que outro, mais agressivo, para motivar políticas mais ousadas e inovadoras nas áreas do emprego, habitação e segurança social.

O País está a viver uma fase interessante com a aprovação de legislação que visa aliviar a pressão histórica - Lei de Regime Especial de Certificação de Óbitos - sobre os diversos conflitos e as suas vítimas, nomeadamente as do 27 de Maio, mas não só. Esta foi uma forma razoável de lidar com o problema ou faria diferente?

Já foi bom dar este passo. Precisamos de fazer mais. Era necessário começar por fazer alguma coisa... Já não é sem tempo!... Por isso, repito, foi bom dar este passo. Agora, dado este passo inicial, precisamos de alargar consensos, ultrapassar barreiras psicológicas e político-partidárias, quebrando as amarras que nos prendem ao passado e que retardam a formação de uma consciência nacional que seja fundamento da unidade nacional. A Comissão encarregue de tratar deste "dossier" requer patriotas idóneos, comprometidos apenas com a busca da verdade, da reconciliação e da justiça e que reúnam, eles próprios, consenso aos olhos de todos. Os membros da comissão devem fazer-se possuir pelo espírito de humildade; devem buscar e promover o perdão mútuo e o reencontro dos angolanos, através da verdade apurada nas entrelinhas do contraditório; devem evitar recriminações para devolverem a paz espiritual aos angolanos, permitindo, assim, a construção dos alicerces da Nação e da identidade nacional com materiais sólidos, verdadeiros e aceites por todos.

Há, por exemplo, corpos de antigos dirigentes da UNITA que ainda não foram devolvidos. Porque acha que não sucedeu? É altura de forçar esse encontro com a História?

Se forem satisfeitos os requisitos apontados na resposta anterior, creio que todos estes casos e outros de todas as partes que estiveram envolvidos nos conflitos que o País conheceu e que não foram aqui mencionados, serão esclarecidos e enquadrados neste processo.

 

Na história do seu partido há episódios que também têm sido apontados como trágicos. É também momento de os assumir? De os explicar?

Sim, estes episódios já foram publicamente assumidos, primeiro pelo próprio presidente fundador, Dr. Jonas Malheiro Savimbi, que, em diversas ocasiões, se referiu a eles como sendo um passivo negativo do partido, enquanto organização revolucionária militarizada num contexto de guerra e de perseguição internacional impiedosa. Entretanto, é de sublinhar o facto de que ele fê-lo de uma forma mais expressiva, detalhada e formal na XVI Conferência do Partido, um ano antes da sua morte. Posteriormente, outros dirigentes do partido também o fizeram, publicamente, pedindo desculpas aos angolanos. Porém, não será demais incluir estes casos no processo actual, pois estamos a falar e buscar aqui a reconciliação nacional. A explicação que deve ser feita agora ajudará, se calhar, a "matar" as versões falsas que têm sido veiculadas, carregadas de motivações inconfessas.

O Sr. foi um homem de diálogo, especialmente com o actual Chefe de Estado, mas também não deixou de falar sempre que lhe surgiu como útil, com o anterior Presidente, José Eduardo dos Santos. Olhando para trás, faria a mesma coisa?

Como já referi atrás, precisamos de cultivar o hábito do diálogo, pois é a única forma sadia e duradoura de ultrapassar diferendos, conflitos e até para construir pontes e cimentar a confiança entre as partes em presença para um futuro mais risonho para o nosso País.

O que é que gostaria de ter conseguido durante os seus mandatos como presidente da UNITA e não conseguiu?

É natural que o objectivo maior na luta política que a UNITA leva a cabo é vencer eleições e assumir a condução dos destinos de Angola. Este é o objectivo maior que, entretanto, ainda não foi alcançado. Porém, tivemos o privilégio de contribuir para criar o ambiente que está conduzindo Angola à mudança.

O que é que não foi cumprido à volta do protocolo de Lusaka e deveria ter sido feito?

Existem várias cláusulas do Protocolo de Lusaka que não foram implementadas pelo Governo. Algumas delas até hoje não foram cumpridas na totalidade e outras parcialmente.

Por exemplo...

... a entrega do património da UNITA "nas condições em que se encontra", como rezam os acordos, não foi realizada na totalidade. Só em Luanda, existem 26 edifícios ou instalações que até hoje não foram devolvidos à sua proprietária, que é a UNITA. Das 87 instalações que o Governo está obrigado a entregar à UNITA, só 36 foram entregues, restando 51 por entregar. A inserção de membros da UNITA na administração de empresas públicas, no quadro da inclusão inerente ao processo de reconciliação nacional não se implementou.

Nem um?

Nem um só membro da UNITA foi indicado para integrar algum conselho de administração de alguma empresa pública, ao contrário do estabelecido nos Acordos de Paz para Angola. O processo de desmobilização conheceu muitos vícios, próprios de uma sociedade corrupta e isso acabou por beneficiar muitos que nunca sequer foram membros da UNITA, deixando de fora os que na realidade combateram e, por isso, mereciam e merecem ser desmobilizados. Isso para citar apenas alguns exemplos que configuram o não cumprimento integral do Protocolo de Lusaka, pelo Governo.

A UNITA cumpriu a sua parte totalmente?

Como é sabido, a UNITA chegou mesmo a ser sancionada pelas Nações Unidas, numa atitude inédita por se ter considerado, injusta e erradamente, que a UNITA não havia permitido a extensão da Administração Central do Estado ao corredor formado pelo Bailundo, Mungo e Andulo, que constituía o seu último reduto, enquanto as negociações para ultrapassar obstáculos surgidos na implementação dos acordos continuavam. A UNITA acabou, posteriormente, por ficar sem o referido corredor tendo, por conseguinte, ficado sem mais nenhuma cláusula dos acordos por cumprir.

Voltando à política actual. Como olha para o desempenho do seu partido enquanto líder da oposição?

Acho que tem cumprido o seu papel, principalmente se tivermos em conta as limitações impostas aos partidos políticos angolanos que devem fazer oposição democrática num ambiente ainda não plenamente democrático. Temos de aceitar que os partidos na oposição têm feito muito, se considerarmos que no nosso país o partido estado controla o espaço público, partidariza a economia que deve sustentar a política, condiciona arbitrariamente a actividade político-partidária dos oponentes e o acesso aos meios de comunicação públicos que, por sinal, são os que cobrem todo o País e utiliza de forma não igual e não controlada os recursos públicos - sejam eles financeiros, patrimoniais ou logísticos para sustentar a sua actividade político-partidária, confundindo-a com a do Estado.

Naquilo que os dirigentes do "Galo Negro" não se cansam de sublinhar como um insucesso do Executivo de João Lourenço, o combate à corrupção, o que acha que é preciso fazer? Exigir?

O combate à corrupção, nos moldes em que está a ser feito, nunca atingirá o seu objectivo. Recordamo-nos todos dos discursos do senhor Presidente José Eduardo dos Santos e das leis aprovadas sobre a matéria durante o seu mandato e sabemos todos o que se passou na realidade. O senhor Presidente João Lourenço deu, desde o início do seu mandato, passos mais largos e chegou mesmo a criar condições para que uns tantos fossem parar aos calabouços do Estado. Porém, sabemos todos onde e como estamos sobre esta matéria. É sabida a minha posição sobre este assunto. Não acredito que o sistema promotor da corrupção e os que dele viveram e vivem sejam capazes de o combater e desmantelar com eficácia.

Por falta de vontade?

Até pode não ser tanto por falta de vontade, mas pelas complexas conivências e cumplicidades que o problema encerra nas suas diversas e também complexas ramificações. Ademais, é preciso ter sempre presente que a grande diferença entre a corrupção em outros países e a corrupção de Angola, é que a nossa corrupção é sistémica, foi instituída pelo Estado, de propósito, para subverter a democracia, inviabilizar a educação, e, assim, sabotar o desenvolvimento humano das maiorias para perpetuar no poder uma oligarquia que endivida Angola sem limites e não a tem como sua única Pátria. O patriotismo exige que Angola combata sem tréguas e de forma eficaz a génese da corrupção que permite que um partido se confunda com o Estado e capture o Estado democrático para se perpetuar no poder.

O que propõe?

A luta contra esta corrupção sistémica não pode ser dirigida apenas contra pessoas nem para a satisfação de objectivos pessoais ou de grupo. Ela deve ser dirigida contra o sistema corruptor, montado pelo Partido que governa Angola há 45 anos. Nem pode incluir apenas a corrupção financeira. Precisa incluir também, e principalmente, a corrupção política, a corrupção eleitoral, a corrupção social, a corrupção religiosa e a corrupção judicial.

O Presidente da República não está, de certa forma, a procurar esse caminho?

Na minha maneira de ver, o senhor Presidente João Lourenço parece ter esta vontade, pode até ir mais longe, mas precisa de vencer não só o conjunto do que chamo forças de bloqueio, constituídas por pessoas poderosas e também por factores de risco que, de um lado, requerem mais tempo e, do outro lado, podem levar a sua base de sustentação - o MPLA- à desintegração ou mesmo à destruição. E, no meio disso tudo, a minha questão permanece no ar. Quererá, o senhor Presidente João Lourenço salvar Angola ou o MPLA? Direi mais: terá tempo para ir tão longe?

Tem acompanhado a polémica em torno dos alegados documentos falsos inseridos no processo na justiça contra a empresária Isabel dos Santos?

Tenho acompanhado estas polémicas e, a cada dia que passa, fico mais perplexo e preocupado porque os angolanos estão a aperceber-se que perderam o futuro. Não estou a falar aqui apenas dos casos recentes e mais mediáticos, como é o caso que envolve a cidadã Isabel dos Santos. Temos outros casos que nos deixam a impressão de que se manipula o Direito para se subverter a justiça.

Se o que se alega sobre os documentos falsos é verdadeiro, pergunta-se: Como é que agentes do Estado chegam ao ponto de falsificar documentos constituintes de um processo judicial de tamanha dimensão? Porque é que advogados de grande reputação internacional num caso altamente mediático iriam fabricar tamanha acusação contra a Procuradoria-Geral da República, num processo judicial também de tamanha envergadura, se afinal tudo não passa de uma invenção?

Tudo isso deixa-me perplexo e muitíssimo preocupado com o futuro. Gostaria que deixassem outra impressão, diferente daquela que temos agora, porque senão ver-nos-emos no dever de perguntar que farão os angolanos para resgatarem o País que lhes foi capturado e o futuro que lhes está a ser roubado?

A PGR tem estado a falhar ou tem estado bem?

A PGR é parte do sistema de partido estado que instituiu a corrupção. A lei que a governa continua a colocá-la na dependência directa do titular do poder executivo, que é o poder do Estado que gere os dinheiros públicos e está, por isso, mais exposto a actos de corrupção. Repito que a luta contra esta corrupção sistémica não pode ser dirigida apenas contra pessoas, sejam elas Presidentes da República ou governadores ou outra coisa, nem para a satisfação de objectivos pessoais ou de grupo. Ela deve ser dirigida contra o sistema corruptor, montado pelo Partido que governa Angola há 45 anos. Nem pode incluir apenas a corrupção financeira. Precisa incluir também, e principalmente, a corrupção política, a corrupção eleitoral, a corrupção social, a corrupção religiosa e a corrupção judicial.

Qual é a diferença em termos de governação entre o ex-presidente da República, José Eduardo dos Santos e João Lourenço?

Acho que em vez de avaliarmos um ou outro Presidente da República que já tivemos, prefiro falar do MPLA. É o partido que sustenta a acção do Governo liderado por um ou por outro. É este o factor permanente nesta equação. Enquanto o titular do poder executivo do Estado, seja ele quem for, não se libertar do partido que capturou o Estado não haverá progresso sustentável, não haverá mudança.

Sem isso, é o futuro que pode estar em causa...

Não haverá futuro. Não é o Comité Central que aprova os programas de governo para o Bureau Político implementar através do executivo cuja selecção é por si aprovada?

Diga-me?

Na avaliação da governação de um País que é governado por um partido estado, temos de avaliar o partido-estado, que é o MPLA e não tanto o Presidente da República, que é apenas o agente do MPLA que implementa as acções orientadas e supervisionadas pelo seu Bureau Político.

É uma máquina, um sistema...

É o MPLA que, constantemente, analisa o grau de implementação do programa estabelecido e aprovado em sede do seu Comité Central. Então, quem deve ser avaliado na realidade é o MPLA que, no fundo, continua a defraudar a História, subverter a Constituição e a assaltar impunemente os cofres do Estado para fins privados. O MPLA é um dos principais beneficiários dos maiores desvios, assaltos e fraudes verificados neste País, mas ainda não foi constituído arguido. Ironicamente, é o mesmo MPLA que afirma estar a combater a impunidade e a corrigir o que está mal. Mas os angolanos sabem que é o MPLA que continua a manter capturado o Estado angolano e a manter milhões de angolanos a viver abaixo da linha da pobreza.

Têm surgido uns rumores sobre uma ainda escondida vontade de o MPLA alterar a Constituição para permitir um 3º mandato presidencial. O que acha?

A Constituição precisa, na realidade, de algumas alterações como, por exemplo, na forma de eleger o Presidente da República, consagrando o sufrágio universal directo e secreto para a eleição do Presidente da República; na consagração efectiva do equilíbrio entre os poderes que exercem as funções legislativa e executiva, assegurando mecanismos eficazes de pesos e contrapesos na fiscalização e controlo recíproco entre os diversos órgãos de soberania, na eficácia do controlo da execução orçamental, na titularidade, posse e utilidade das terras, consagrando a terra como propriedade do povo; nos símbolos do País, consagrando símbolos mais consensuais e representativos do regime democrático e da pluralidade nacional, na consagração do estatuto do Banco Nacional como autoridade monetária especializada e independente do poder Executivo do Estado, responsável pela regulação dos instrumentos de gestão das políticas monetária, fiscal e cambial e na definição do estatuto formal das línguas nacionais. Elementos estruturantes que asseguram e concretizam a reforma do sistema judicial apelam para o estabelecimento do Tribunal Eleitoral como órgão de soberania, independente do Poder Executivo, que concentre a organização, condução e execução de todas as actividades eleitorais inerentes a todas as fases dos processos eleitorais, pelo que devem também ter dignidade constitucional. O mesmo se recomenda para a institucionalização efectiva das autarquias locais e o papel dos governos provinciais.

Mas...

Acho que qualquer tentativa de alterar a Constituição no sentido de se aumentar mandatos do órgão Presidente da República ou o número de anos que constituem tais mandatos configurarão um retrocesso do processo democrático que o nosso País já conheceu e, quiçá, um golpe constitucional que Angola já não merece.

Nas eleições gerais, o que entende ser urgente acontecer no seio da UNITA para que possa, depois de quase cinco décadas de independência, acontecer a alternância de Governo?

O problema não reside na UNITA, reside no sistema. Angola precisa de abandonar decididamente a cultura da hegemonia para abraçar definitivamente o republicanismo e a cultura democrática. Sem receios nem manobras. O País precisa de assegurar que não haja em Angola um partido estado a disputar eleições não isonómicas [sem igualdade à partida], organizadas e controladas por ele mesmo. O acto eleitoral é o acto sublime de exercício de poder político, por via do qual os angolanos exercem a sua soberania. É por via dele que o soberano demite os titulares temporários do poder público. Não pode, por isso, ser controlado pelo Executivo ou pelo partido estado. São os cidadãos, titulares colectivos da soberania indivisível, que devem controlar os processos eleitorais.

O que fazer então?

Angola precisa de reformar todo o sistema que governa a sua democracia eleitoral, incluindo o subsistema do registo eleitoral, o subsistema de controlo de financiamento dos partidos, o subsistema de organização e controlo do acto eleitoral. Angola precisa de mudar tanto a sua cultura eleitoral como a sua cultura do exercício do poder público.

Continuo a defender para Angola a consagração constitucional de um órgão soberano, especializado e independente do Poder Executivo do Estado, incumbido de governar e conduzir todas as fases dos processos eleitorais, incluindo a definição, gestão e manutenção da geografia eleitoral e da logística eleitoral, a admissão de candidaturas, o financiamento público e privado das candidaturas e o contencioso eleitoral em todas as suas fases. Nenhum partido político e nenhuma candidatura devem poder controlar, directa ou indirectamente, esse órgão.

Angola teria assim mais e melhor democracia?

Creio que esta medida facultar-nos-ia processos eleitorais incontestáveis e imaculados. A nossa democracia deixaria de ser tutelada e produziria, certamente, alternância. NJ

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