Sexta, 19 de Abril de 2024
Follow Us

Sexta, 05 Julho 2019 00:14

A nossa saída do CAN e a vida de marimbondo

Até a nossa principal selecção de futebol está contra a gatunagem de colarinho branco, que viu, na terça-feira, reacender-se contra ela a raiva do angolano comum que não lhe perdoa os males que continua a causar-lhe.

O futebol, por razões óbvias, é considerado em quase todo o mundo, o desporto-rei, capaz de arrastar multidões, fazer-lhes esquecer, momentaneamente, asperezas do dia-a-dia, algumas, bem difíceis de carregar, como doenças, desemprego, falta de habitação digna desse nome, pobreza, no nosso caso, o almanaque variado e enormíssimo das picadas de marimbondo. O angolano não escapa à regra. Àquela paixão soma a alegria permanente de viver, capacidade de transformar contrariedades em paródia, rir-se, inclusivamente, de si próprio. E de fazer renascer nele a esperança.

Por isso, apesar da preparação dos Palancas ter sido algo conturbada, a mostrar, em alguns aspectos, amadorismo intolerável na ocupação do espaço reservado exclusivamente ao profissionalismo, de que são exemplos pagamentos atrasados aos atletas, treino cancelado por falta de marcação de local para o realizar, a maioria dos angolanos, pegou nos problemas que lhe atrapalham a vida, amarrou-os numa trouxa, atirou-a para trás das costas e “entrou em estágio” para a partida, com o Mali de má memória. Com quem tínhamos “contas a ajustar” trazidas do CAN de Luanda.

Mesmo que a nossa selecção, dias antes, não tivesse ido além de um impensável nulo frente à estreante Mauritânia, o angolano comum, uma vez mais, esqueceu quase tudo. Diferenças partidárias, rivalidades clubistas internas e externas. Que se pode ser do de Agosto ou do Inter, mas dividir paixões com United ou City, Real ou Barça. Tal como as eternas discussões de fim de tarde, que podem também ocupar almoços de sábados, sobre quem é melhor: Mourinho ou Guardiola, Messi ou Ronaldo?

O “estágio” do angolano comum pode ter começado na sexta-feira anterior, prolongado pelo sábado e domingo. Para uns, interrompido “abruptamente” na segunda-feira, que o trabalho esperava e faltar no primeiro dia da semana “fica mal”. Houve, certamente, quem não se importasse com as aparências, ditos, eventual desconto no salário. Certo é que à hora do jogo, bares, esplanadas, restaurantes, tabernas, casas particulares, até na rua, tudo onde houvesse um aparelho de televisão, encheram-se de angolanos. E apenas se fez silêncio para ouvir e cantar o Hino Nacional. Acompanhado pelos batimentos do coração a transbordar de esperança.

Afinal, os malianos, já apurados, davam-se ao luxo de “poupar” sete titulares. E um simples empate chegava para passar à fase seguinte da prova. De nada valeu. Eles marcaram, os Palancas, não. A festa terminou ali. E o angolano comum, no regresso ao cubico ou na hora de deitar o corpo antes de ir trabalhar, voltou a pensar, naturalmente, na vida que o esperava num país que podia ser bem melhor para habitar, estudar, trabalhar, mas, onde as carências, de toda a ordem, continuam mais do que muitas.

Por culpa de minorias insaciáveis que se serviram do erário, não como delas, que se assim fosse não o desbaratavam como fizeram, mas como dádiva eterna de deuses. Destinada a castas privilegiadas, superiores, insensíveis, intocáveis. Caracterizadas pelo egoísmo, mas, também, convém sublinhar, pela estupidez que os fez acreditar na impunidade eterna. Que começou já a desmoronar-se. Lentamente, é verdade, mas a fazê-las perceber que “nem tudo o que luz é ouro”, mesmo que tenham posto, ilegalmente, lá fora dinheiro do povo que renegaram e os abomina.

A participação dos Palancas no CAN do Egipto pode-lhes ter dado alguma folga nas falas do povo, mas acabou. As orelhas vão continuar a arder-lhes. Cada vez mais. Que o angolano, o comum, é generoso, mas não gosta que trocem dele.

Por Luciano Rocha / JA

Rate this item
(1 Vote)