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Segunda, 11 Novembro 2019 22:23

"José Eduardo dos Santos não esperava uma rutura tão forte de João Lourenço"

Antiga correspondente da France Press em Angola fala em exclusivo ao Plataforma sobre o livro que lançou em torno da família de José Eduardo dos Santos e de como o sistema criado pelo antigo presidente de Angola alimentou a corrupção no país.

Como o filho de um pedreiro reservado se tornou no todo-poderoso presidente de Angola, durante 38 anos, apoiado por um sistema criado por ele próprio. José Eduardo dos Santos e Angola são os protagonistas do livro La dos Santos Company: Mainmise sur l'Angola (A Empresa dos Santos, o Controlo de Angola), lançado por Estelle Maussion, correspondente da France Presse e da RFI em Angola entre 2012 e 2015.

Quais os principais defeitos e virtudes da personagem principal do seu livro, o antigo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos? O que explica a sua longevidade enquanto chefe de Estado de Angola?

É muito difícil pronunciarmo-nos sobre uma personalidade tão secreta e discreta como José Eduardo dos Santos. Aliás, esta sua faceta terá certamente contribuído para a sua longevidade no poder. Tanto quanto o seu caráter é o seu percurso que interessa. Como é que o filho de um pedreiro reservado se tornou numa figura toda-poderosa e temida? De uma maneira singular, observamos que esse presidente parco em palavras assentou o seu poder num controlo exacerbado da comunicação.

Primeiro é a guerra que desempenha um papel crucial fazendo de José Eduardo dos Santos um vencedor indiscutível. A sua vitória militar permitiu-lhe desenvolver uma retórica laudatória em torno da sua pessoa, centrada num vocabulário de engenharia e de construção. É assim que se torna o «arquiteto da paz» e ao mesmo tempo o arquiteto da reconstrução nacional.

Note-se em seguida a sua capacidade de manipular o seu partido e a oposição, de forjar habilmente alianças diplomáticas e silenciar vozes críticas.

Sublinhe-se, por fim, que José Eduardo dos Santos soube muito rapidamente e a longo prazo centralizar os poderes soberanos, em particular o dos serviços secretos que lhe assegurava o controlo da informação.

Como é que José Eduardo dos Santos conseguiu ficar tanto tempo no poder? Criou sozinho um sistema que lhe permitiu manter-se 38 anos no poder? Ou criou uma rede de interesses que lhe permitiu reinar e controlar o país?

Ele é o grande organizador desse sistema. Ele é o seu centro, o arquiteto, o regulador e, por fim, o seu destruidor, uma vez que foi a sua decisão de se retirar da vida política que marcou o início da sua queda do poder. Dito isto, José Eduardo dos Santos não teria conseguido manter-se no poder assim tanto tempo sem um restrito círculo de pessoas próximas nem sem ligações ao estrangeiro.

No livro, apresento esses homens e mulheres da sua confiança, elos cruciais da Empresa dos Santos. A filha mais velha de José Eduardo, Isabel, é "a estrela" do clã que projeta o sucesso da família no exterior. O seu filho, José Filomeno, assume o papel do membro da família sacrificado, perseguido pela justiça por fraude e enfrenta julgamento. Há ainda o general Kopelipa, chefe da segurança de José Eduardo, indispensável tanto em tempo de guerra como em tempo de paz. E não esqueçamos Manuel Vicente, o antigo vice-presidente angolano e número dois do país, hábil empresário e negociador que parece ter conseguido atravessar a mudança de regime sem problemas.

A Estelle estava em Angola em 2015. Dois anos depois, João Lourenço assumiu a presidência do país. Já se sentiam ventos de mudança? Foi uma mudança preparada por José Eduardo dos Santos?

Quando deixei Luanda, em julho de 2015, não imaginava que José Eduardo dos Santos deixaria o poder apenas dois anos depois. Poucas pessoas o esperariam. Ao longo dos anos, tínhamo-nos habituado a ver o presidente angolano a afastar todo e qualquer potencial delfim ou fazer de conta que preparava um para depois o descartar. Foi o que se passou, por exemplo, com o atual presidente da Assembleia Nacional e antigo primeiro-ministro Fernando da Piedade Dias dos Santos "Nando" e com Manuel Vicente.

Mas, por fim, chegou a transferência de poder entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos. A transferência não foi feita de um dia para o outro. Começou no final de 2016 com a decisão de José Eduardo dos Santos de não se apresentar como candidato do MPLA às eleições gerais de 2017. Depois, no ano seguinte, o antigo presidente também teve que ceder a liderança do partido ao seu sucessor, João Lourenço.

No meu livro mostro que esta transição, doce na aparência, foi na realidade fonte de fortes tensões. Se José Eduardo dos Santos pensava que manteria o poder de uma forma ou de outra, rapidamente compreendeu que o seu sucessor não aceitaria isso. E o novo homem forte [de Angola] herdou o sistema de poder construído pelo seu antecessor: um sistema que dá plenos poderes a quem o dirige, mergulhando, no entanto, a família dos Santos numa situação de quase opositores.

A família dos Santos tirou dividendos pessoais da relação direta com o presidente de um Estado tão rico em recursos naturais como é o caso de Angola?

Para responder a esta questão, é preciso recuar até às origens do sistema de poder político, económico e social que José Eduardo dos Santos implementou durante 38 anos. Este sistema nasceu no contexto particular e difícil da guerra civil. Era necessário que cada um dos lados - MPLA de um lado e UNITA do outro - encontrasse os meios para se abastecer de armas, apesar dos embargos internacionais. Uma situação que conduziu a práticas opacas, a uma promiscuidade entre fundos públicos e privados, à corrupção.

Com o regresso da paz, em 2002, essas práticas perduraram e até foram amplificadas de forma dramática com o aumento das receitas do petróleo. Foi o que permitiu o estabelecimento do sistema dos Santos, ao qual chamo "a empresa dos Santos". E, mesmo que a família e outros membros do clã o recusem, este sistema opaco desenvolveu-se a partir da apropriação das riquezas do país por parte de uma elite e da confusão entre interesses públicos e privados num contexto de nepotismo. Note-se que em 2017, Angola situava-se na 167.ª posição num conjunto de 180 países na lista da Transparency International que mede a perceção de corrupção no setor público. É importante destacar que este sistema não era exclusivamente angolano, mas globalizado, com ramificações e parceiros no exterior.

Quais foram os primeiros sinais de queda do sistema implementado por José Eduardo dos Santos para governar Angola?

Este sistema de poder, construído por José Eduardo dos Santos durante 38 anos, estava centrado na sua pessoa. Começou a vacilar com a sua decisão de não se apresentar como candidato do MPLA às eleições gerais de 2017. Foi uma reviravolta inesperada pela maior parte dos observadores da época. Para a compreender, é preciso recuar ao ano de 2016. José Eduardo dos Santos enfrentou então uma série de dificuldades. No plano económico, o país está em crise desde a queda do preço do petróleo em meados de 2014. Ao nível social, as tensões aumentam com manifestações de jovens cada vez mais frequentes.

A situação não é muito melhor no plano político. Mesmo no seio do partido presidencial, ouvem-se críticas, especialmente contra a omnipresença da família dos Santos. A este contexto difícil junta-se um outro fator mais pessoal mas, na minha opinião, determinante: o estado de saúde de José Eduardo dos Santos que, apesar de ser um assunto tabu por excelência, parece ter-se degradado. Tudo isto explica a decisão de José Eduardo dos Santos de passar o poder. Talvez tenha calculado que era melhor para ele e para a sua família passarem o testemunho tentando controlar a queda o melhor possível. Mas ele provavelmente não esperava uma estratégia de rutura assim tão forte da parte do seu sucessor.

José Filomeno dos Santos e Isabel dos Santos foram envolvidos numa rede de suspeição relacionada com algumas decisões tomadas durante o Governo do seu pai. Poderão ainda vir a desempenhar um papel de destaque em Angola?

Não tenho uma bola de cristal pelo que me é difícil responder. É certo que tanto um como o outro já não ocupam as posições de poder que tiveram nos últimos anos. Isto é particularmente verdade para José Filomeno dos Santos, chefe do fundo soberano de Angola durante a presidência do seu pai, demitido por João Lourenço no início de 2018 e agora a contas com a justiça. Esta trajetória leva-me a apresentá-lo no meio livro como o "filho sacrificado". No caso de Isabel dos Santos, a situação não é tão clara. É certo que algumas das suas empresas perderam contratos ou posições. É certo que foi demitida da presidência da Sonangol, a empresa nacional de petróleos. Dito isto, ela continua a ter um peso importante na economia angolana (telecomunicações, banca, diamantes, grande distribuição) e mantém numerosos ativos na economia portuguesa, com destaque para as participações de capital na NOS, na Efacec e na Galp. Portanto, ainda é muito cedo para saber se a sua perda de influência é conjuntural ou estrutural.

Quando foi para Angola, já tinha a ideia de escrever este livro? Ou foi só depois de lá estar que se interessou pela história da família dos Santos?

A minha experiência no terreno como correspondente durante quase quatro anos foi muito rica. Foi isso que me deu vontade de escrever o livro. No início, queria falar de Angola no geral, um país demasiado desconhecido. Depois, durante as conversas com a minha editora Karthala, apercebemo-nos que tínhamos de nos focar na família dos Santos para oferecer uma história atrativa e detalhada. Para mim, é a melhor porta de entrada para contar a história de Angola.

Como foi o processo de pesquisa para o livro? Foi fácil aceder a todas as fontes de informação que quis?

Foi um trabalho de longo prazo, alimentado pela minha experiência no terreno em Luanda e, depois do regresso a Paris, por pesquisas, discussões, entrevistas, leituras académicas e acompanhamento contínuo da atualidade angolana. E isto durante vários anos. Sobretudo no último ano, dedicado à escrita.

É claro que o acesso às fontes era complicado. Muitos dos meus pedidos de entrevistas continuam sem resposta. Por vezes foi necessário muito tempo para entrar em contacto com algumas pessoas. Outras, pelo contrário, mesmo não sendo muitas, tinham uma grande vontade de falar comigo. Houve uma mudança notável do ponto de vista da liberdade de expressão nestes últimos anos. Com a chegada ao poder de João Lourenço, as palavras ficaram mais soltas. É um movimento positivo mas também um desafio para o Executivo que tem de gerir estas vozes críticas e as importantes expectativas sociais da população.

Numa entrevista à agência Lusa, disse que se sentiu persona non grata em Angola. Como é que ultrapassou esta situação tanto para fazer o seu trabalho de correspondente da France-Presse como para escrever o livro?

Agradeço-lhe esta questão para clarificar um ponto. Não me senti verdadeiramente non grata e não tive qualquer problema para me instalar em Angola como jornalista e correspondente da AFP e da RFI. Por outro lado, e foi o que expliquei à Lusa, cheguei a Luanda num contexto particular. Estávamos no início de 2012, numa altura em que os preços do petróleo estavam altos e Angola era um país bem cotado no plano diplomático. Estados Unidos, China, Portugal, Brasil e outros países procuravam reforçar os laços com Angola. Era também esse o caso de França. Mas França encontrava-se numa situação difícil, herança do caso Angolagate. Tínhamos o sentimento que, apesar dos esforços de reaproximação, França era ainda posta de lado em Angola. E isso pode ter tornado o meu trabalho mais complicado.

Como correspondente em Angola fui, de forma geral, confrontada com as mesmas dificuldades dos meus outros colegas estrangeiros ou angolanos: uma certa burocracia, engarrafamentos que tornavam as deslocações difíceis, um acesso muito limitado a certas pessoas, sobretudo a membros da elite política. Na rua, sempre que fazíamos perguntas sobre o poder ou a família dos Santos, poucas pessoas acediam a responder. Era preciso encontrar forma de ganhar a sua confiança, muitas vezes prometendo-lhes que as respostas seriam mantidas anónimas.

O que mais a surpreendeu na saga da família dos Santos?

O que é surpreendente é como uma situação que parece estável e imutável pode, afinal, mudar. No meu livro, conto a impressionante ascensão da família dos Santos até uma situação de todo-poderosa.

Nesse momento, nos anos 2010, a família (e em particular o presidente José Eduardo dos Santos) parece poder ficar na liderança de Angola ainda durante muitos anos. No entanto, assiste-se a uma rutura e a situação muda. Os dos Santos deixam de estar no poder. É o início de uma queda cujo resultado ainda não é conhecido.
É preciso sublinhar que esta viragem histórica em Angola aconteceu de forma pacífica, ao contrário do que aconteceu em muitos países africanos. Há quem defenda que esta mudança sem revolução violenta após 38 anos de poder se deve a José Eduardo dos Santos. Mas também há quem defenda que se trata de uma verdadeira mudança: o sucessor João Lourenço, puro produto do sistema de José Eduardo dos Santos e oriundo do mesmo partido que ele, "não podia fazer um fato novo com pano velho", nem romper totalmente com as práticas em vigor nas últimas décadas. Resta saber se o MPLA pode ser a força motriz e o protagonista de uma nova governança em Angola.

Como foi recebido o livro? Teve muitas reações? Positivas ou negativas?

Apesar de o livro ter saído há poucas semanas, estou muito contente com a forma como está a ser recebido. Vários meios de comunicação, franceses, portugueses e ingleses falaram sobre o livro e espera que continuem. O editor recebeu um bom feedback dos livreiros e tenho recebido mensagens e sinais de interesse de França mas também de Portugal e de Angola. As pessoas estão curiosas para descobrir a trajetória da família dos Santos mas também o país no qual se desenrola a história. Esse é um dos objetivos deste livro: falar sobre Angola, um país que merece mais atenção.

Está prevista a edição do livro em português?

Eu e a minha editora Karthala gostaríamos muito que o livro fosse traduzido em português. Estão em curso negociações com editores portugueses e continuamos abertos a outras propostas!   Plataforma Media 

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