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Segunda, 29 Agosto 2016 12:50

O Kwanza está a ficar "burro" e a inflação é a "palha" que o alimenta

Existe na sociedade angolana uma percepção cada vez mais enraizada de que a moeda nacional, o Kwanza, está a valer menos a cada dia que passa. A razão é a crise que o país atravessa e a inevitável inflação, superior a 35 por cento este ano, que galopa nas suas costas. À memória dos mais velhos chegam os tempos do "Kwanza burro", quando, na década de 1990, as notas de cinco milhões para pouco serviam.

"O Kwanza está a ficar burro muito depressa". A frase, repetida de boca em boca, vai fazendo caminho e ajuda a consolidar a ideia de que esta corrida inflacionária pode não estar controlada, levando os consumidores e os empresários a agir em função dessa percepção. Uns comprando já aquilo de que vão necessitar no futuro e os outros ajustando os preços ao valor das divisas no mercado informal e não ao câmbio oficial.

O sociólogo Paulo de Carvalho, que tem trabalhos publicados sobre o tempo do "Kwanza burro", na década de 1990, estabelece uma similitude entre essa época e os dias de hoje, mas sublinha que "há diferenças substanciais" entre os dois períodos em causa.

E uma dessas diferenças, aponta o sociólogo ao Novo Jornal Online, é o menor dramatismo na desvalorização do Kwanza que acontece hoje, sublinhando, todavia, que, por causa da fraca massa monetária em circulação, comparando com a década de 1990, as pessoas adquirem mais facilmente a percepção de que estão a empobrecer.

"Naquela altura havia muita moeda em circulação e hoje não há, o que facilita a ideia e a construção factual de uma realidade em que um ligeiro aumento de preços é mais notado no bolso e na qualidade de vida das populações", nota Paulo de Carvalho.

Uma das razões, admite, pode ser o facto de as pessoas que têm negócios, e não tendo divisas acessíveis para viajar e fazer aquisições no exterior, estar a gerar uma poupança forçada, retirando o dinheiro de circulação.

Mas a aposta do sociólogo vai para a percepção que existe de que, por exemplo, "o milhão que se tem na mão, hoje, amanhã já só vai valer 700 mil", e que aquilo que hoje pode comprar por 700 mil kwanzas, amanhã possa precisar de um milhão, "porque essa é a realidade que as pessoas encontram quando olham em volta e quando reflectem sobre o que podiam adquirir com uma determinada verba há três anos e o que conseguem comprar hoje com o mesmo dinheiro".

Paulo de Carvalho sublinha que "o factor psicológico exerce sempre muita influência" porque "essa ideia de desvalorização, mesmo quando não tem tradução literal na realidade dos números, vai-se entranhando" e "define a forma como as pessoas gastam o seu dinheiro ou mudam a forma como utilizam os seus rendimentos", especialmente sem acesso ao porto seguro que costumam ser as divisas mais fortes como o dólar norte-americano ou o euro.

E um dos efeitos mais tremendos apontados pelo sociólogo é risco de as pessoas olharem para as suas poupanças e pensarem que é "preferível despachá-las em bens essenciais", seja na compra de arroz, para os mais pobres, sejam bens mais caros, para os mais endinheirados.

O Governo tem de desvalorizar o Kwanza

Para evitar a escalada da desconfiança no Kwanza e os tempos em que este, por pouco valer era apelidado de "burro", o economista e professor na Faculdade de Economia da Universidade Católica de Angola, Carlos Rosado de Carvalho, entende que as autoridades devem reagir ao momento actual porque "as expectativas são sempre determinantes".

Uma das questões que o economista admite como de risco é o eventual "efeito Pavlov" que pode ser traduzido pela noção de que a inflação vai aumentar e isso leva as pessoas a gastar, num rolar de bola de neve que pode ter consequências graves.

Perante este hipotético cenário, que, em certas condições, já está a acontecer, "é responsabilidade das autoridades gerirem as expectativas", aponta.

Carlos Rosado de Carvalho entende que o Banco Nacional de Angola têm estado bem com as suas políticas monetárias mais restritivas, mas adverte que o Governo tem de actuar na política cambial.

Porque, adianta o professor da Católica ao Novo Jornal Online, com as taxas de câmbio a terem como regra as praticadas na rua, entre 500 a 600 kwanzas por dólar norte-americano, a fixação do câmbio oficial nos 166 Akz por dólar "não é razoável".

E, atira: "O Governo devia rapidamente proceder a uma desvalorização da moeda nacional" ao mesmo tempo que fortalece a oferta de divisas aos bancos comerciais para estes as gerirem como pensam ser melhor.

"São os bancos que melhor conhecem as necessidades da economia do país", sublinha o economista, criticando o facto de hoje acontecer que o BNA vende as divisas aos agentes económicos através dos bancos e não directamente a estes, dando-lhes liberdade de acção na resposta às necessidades da economia.

Outra das razões para este cenário é a discrepância entre o câmbio oficial e o oficioso, estando ambos "desfasados da realidade", porque o oficial é irrealista e o da rua "está muito inflacionado".

Mas é, adverte Carlos Rosado de Carvalho, o oficioso que serve de "referência aos empresários quando definem os preços de venda" das suas mercadorias, gerando uma espécie de redemoinho inflacionário.

"Isto só se resolve com a desvalorização do Kwanza", diz, seguro, o economista. Para que valor face ao dólar é que, admite, "ninguém sabe muito bem", embora se possa admitir como razoável um valor médio entre o câmbio formal e o informal.

A história do Kwanza, por vezes "burro", por vezes "esperto", ao ritmo de Matias Damásio

Matias Damásio perguntava em 2012, na sua canção "Kwanza Burro", para onde ia o país, fazendo regressar ao léxico de hoje uma realidade de antigamente.

Damásio cantava assim: "Na carta do pedido agora é mbora dólar, we/Vamos parar aonde, mama?". O futuro do Kwanza, ninguém pode adivinhar, mas o seu passado é conhecido. E conta-se, resumidamente, desta forma...

O Kwanza foi criado após a independência, chegando aos bolsos dos angolanos em 1977, substituindo, em paridade, o antigo Escudo português, em notas com valores de 20, 50, 100, 500 e 1000 kwanzas.

Em 1990 surge um "Novo Kwanza", com paridade ao anterior, mas com um problema para os angolanos, que só puderam trocar 5% das notas antigas pelas novas, passando a obrigatório trocar o resto por títulos do Governo.

Uma forte inflação ocorreu quase de imediato.

O Novo Kwanza surgiu como meras impressões sobrepostas em notas antigas, com valores de 500, 1 000 e 5 000 kwanzas.

Em 1991, a palavra "Novo" desaparece e surgem as notas sem sobreimpressões, com valores de 100, 500, 1 000, 5000, 10 000, 50 000 100 000 e 500 000.

E nasce o "Kwanza Burro"

Com um câmbio de 1 000 para 1, as novas notas são o rosto da fortíssima inflação que se seguiu, depreciando tanto a moeda angolana que começaram a ser impressas notas de 5 000 000 (Cinco milhões) de Kwanzas (na foto).

O Kwanza Burro tem nesta nota de cinco milhões reajustados a sua mais prática justificação para que tenha sido essa a sua designação popular, porque, como muitos se lembram, não dava para comprar quase nada.

Apesar de taxa de conversão, o valor do kwanza antigo tinha-se depreciado de tal ordem que a denominação menor das notas de banco foi de 1 000 kwanzas reajustados. Foram também impressas notas de 5 000, 10 000, 50 000, 100 000, 500 000, 1 000.000 e 5 000.000 kwanzas.

É em 1999 que surge o Kwanza como hoje existe, que aparece subdividido em 100 cêntimos, com o qual se assistiu em Angola a uma relativamente prolongada estabilização cambial e inflação controlada.

Até que a crise gerada pela baixa do preço do petróleo no início deste ano, deu início a uma nova escalada inflacionária, estimada em cerca de 40 por cento para este ano, e criando as condições para que o imaginário popular retome a ideia do regresso do Kwanza Burro. Tudo, porque são necessárias cada vez mais notas para comprar as mesmas coisas...

Expressão "Kwanza burro" ganha nova notoriedade com música de Damásio

Como canta Matias Damásio em "Kwanza Burro", canção "hit" de 2012, "No tempo do Kwanza Burro ê/Mais velho é quem tinha mais idade/Hoje é quem tem mbora kumbu/Jabaculé, o famoso papel/Kandengues de 20 anos dando bregedje em kotas de 40/É só na mangole, é só na mangole".

E, aparentemente, como se ouve cada vez mais nas ruas de Luanda, o que está a ficar para trás é o tempo do Kwanza esperto, como também canta Damásio na mesma música, referindo-se à esperteza ganha, na altura, pela moeda: "Hoje o Kwanza ficou esperto ê/Mamaué, mamaué/Na carta do pedido agora é mbora dólar, we/Vamos parar aonde, mama?".

NJ

 

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