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Segunda, 21 Setembro 2020 07:49

Isabel do Santos e marido foram alvo de relatórios sobre atividades suspeitas em 2013 nos EUA

A filha de ex-presidente de Angola foi alvo de dois relatórios sobre actividades suspeitas em 2013 nos Estados Unidos, um do JP Morgan e outro do Standard Chartered. Em causa estiveram transferências ligadas à Unitel e ao negócio dos diamantes em que Sindika Dokolo foi sócio do Estado angolano

O relatório tem dezenas de páginas e foi concluído a 16 de outubro de 2013. É um dos dois documentos incluídos nos FinCEN Files que estão relacionados com Isabel dos Santos. Uma funcionária do departamento de compliance do JP Morgan Chase Bank, nos Estados Unidos, enviou-o no dia seguinte para a FinCEN, a agência federal responsável por processar e reencaminhar suspeitas sobre potenciais esquemas de lavagem de dinheiro para eventual investigação pelas autoridades policiais.

Nove meses antes disso, a filha mais velha do então ainda presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tinha-se tornado mundialmente famosa, quando a revista Forbes anunciou-a como a primeira mulher multimilionária de toda a África. Com isso também tinham começado a surgir artigos negativos na imprensa internacional sobre a promiscuidade que essa riqueza significava, incluindo informações produzidas pela Global Witness. O interesse suscitado à volta da a jovem estrela acabada de entrar para o ranking dos mais ricos do mundo fez com que em agosto de 2013 a Forbes voltasse a publicar um artigo sobre ela, desta vez escrito a meias com o jornalista angolano Rafael Marques, dando conta de como aquela era uma história não apenas de glamour, mas de profundos conflitos de interesse e de corrupção.

Apesar de nem Isabel dos Santos nem o seu pai serem seus clientes, o relatório enviado à FinCEN mostra como o JP Morgan tinha estado envolvido indiretamente, como banco correspondente, em transferências relacionadas com a família e com o Estado angolano. Houve uma transferência, em particular, que chamou a atenção do compliance da instituição: Sindika Dokolo, o marido de Isabel dos Santos, tinha enviado a 2 de março de 2012 quatro milhões de dólares para uma conta de uma empresa holandesa, a Melbourne Investments BV, que passaram por uma conta correspondente do JP Morgan. Como o banco “foi incapaz de identificar qualquer outra transferência relacionada com a Melbourne Investments BV nem qualquer perfil público sobre ela, isso reforçou a possibilidade de se tratar de uma empresa de fachada sem nenhum propósito comercial”, lê-se no relatório.

Já em 2020, com as revelações trazidas pelo Luanda Leaks, outro projecto do ICIJ, os detalhes sobre esses quatro milhões de dólares e sobre a Melbourne viriam a lume. Esse dinheiro foi usado por Sindika Dokolo para se tornar sócio da empresa estatal angolana Sodiam numa companhia de diamantes de luxo na Suíça, a De Grisogono. Durante essa investigação, aliás, todos os dados recolhidos indicaram que os quatro milhões de dólares teriam sido o único dinheiro colocado pelo marido nesse negócio, em contraste com os 147 milhões colocados pelo Estado angolano (apesar de Dokolo argumentar que investiu um total de 115 milhões), sendo que entretanto a De Grisogono abriu falência e a Sodiam ficou com uma dívida ao banco que Isabel dos Santos controlava em Angola, o BIC.

Seja como for, a total ausência de informação à volta da Melbourne Investments levou o compliance do JP Morgan a reunir no outono de 2013 tudo o que conseguia sobre o casal. O relatório incluiu uma listagem de 26 entidades e pessoas — contando com Sindika, Isabel dos Santos e o pai —que pudessem de uma forma ou de outra serem partes relacionadas, incluindo a Galp em Portugal, em que a filha do presidente angolano era accionista de forma indirecta (acabando por ser descartada qualquer suspeita sobre a empresa energética portuguesa).

Contas em Chipre e no Luxemburgo

Ao todo, o banco identificou um total de 829 milhões de dólares em transferências ocorridas entre 2005 e 2013 relacionadas com o universo dessas entidades, mas pôs de lado a esmagadora maioria delas e concentrou-se em rever apenas algumas dezenas de milhões.

Nessa análise foram identificados movimentos efetuados entre 3 de julho de 2006 e 2 de março de 2012 de contas controladas por Sindika Dokolo que passaram de alguma forma por contas correspondentes tituladas por bancos estrangeiros no JP Morgan. Além dos bancos EuroBIC, BPI, Deutsche Bank em Portugal; e do BAI, do Banco Totta e do BESA em Angola, o marido de Isabel tinha nessa atura contas no Chipre (FMBE Bank), no Luxemburgo (Banque Pictet), em França (Credit du Nord) e no Congo (Banque Internationale pour L’Afrique au Congo, BIAC).

Segundo o que revelou o Luanda Leaks em janeiro, desde 2012 alguns bancos internacionais haviam começado a afastar-se de negócios que pudessem envolver Isabel dos Santos, como aconteceu com o Citigroup e com o Barclays, com estes dois bancos a optarem por pagar compensações para poderem ficarem fora de esquemas de financiamento onde estavam originalmente envolvidos.

De acordo com o relatório encontrado nos FinCEN Files, foram detectadas entradas e saídas de 10 milhões de dólares nas contas de Dokolo durante esses seis anos, sendo que sete milhões corresponderam a saídas, a maioria delas a partir do EuroBIC, em Portugal, e do FBME, no Chipre. A funcionária do compliance notou a existência de transferências regulares de 100 mil euros do FBME para o Banque Pictet no Luxemburgo, comentando que “a frequência, o volume e o valor repetitivo, juntamente com as diferentes localizações dos bancos, indicam possivelmente uma tentativa de fragmentar o movimento de fundos para esconder a materialidade geral dos fluxos de dinheiro e evitar que isso seja alvo de relatórios”.

O documento refere, por outro lado, que a maior parte das entradas de dinheiro para Dokolo foram canalizadas para o BESA em Angola e para o BIAC no Congo. “Uma vez que estas transferências parecem ser proporcionais ao movimento de fundos que saíram de Angola para paraísos bancários com recurso a métodos não transparentes, a totalidade dos fluxos acima descritos são reportados como suspeitos.”

O JP Morgan também reportou como potencialmente problemático um conjunto de transferências de cinco milhões de dólares entre 2005 e 2011 com origem numa conta no BAI em Angola, titulada pela Clínica Sagrada Família, do grupo da Endiama, a empresa estatal angolana de prospecção e exploração de diamantes, para uma conta do BES titulada por uma empresa em Portugal. A suspeita era, de qualquer forma, inconsistente porque a hipótese que a funcionária do compliance levantou era de que a destinatária dos fundos, uma companhia contendo no nome “Prestação de Serviços, SA”, poderia eventualmente ser a Santoro Finance, Prestação de Serviços, SA, uma das empresas do casal Isabel e Sindika em Lisboa. O motivo estava no facto de ambas as empresas coincidirem parcialmente no nome.

Contactado pelo ICIJ, o JP Morgan remeteu para um relatório de 2014 sobre como o banco trabalha, sublinhando que foram entretanto cortadas relações com várias centenas de bancos correspondentes estrangeiros. “Ao mesmo tempo, “foram melhorados os nossos sistemas de controlo.” Nem Sindika Dokolo nem os seus advogados estiveram disponíveis para comentar.

Vidatel também mencionada

Além deste incidente levantado pelo JP Morgan, há depois um outro relatório produzido a 18 de outubro de 2013 enviado pelo Standard Chartered em Nova Iorque para a FinCEN e que, embora não mencionando Isabel dos Santos, refere uma transferência de 18,7 milhões de dólares ocorrida sete anos antes, a 13 de outubro de 2006, tendo como origem a Unitel, a empresa de telecomunicações em Angola de que a empresária é accionista e de que foi presidente, e tendo como destino uma conta do banco BPI em Lisboa titulada por empresa de nome Vidatel Limited, e que passou por uma conta correspondente em Nova Iorque.

O relatório do banco é, de resto, um pouco confuso porque agrega um conjunto de transferências originadas em contas de múltiplas companhias com o nome Unitel, numa série de países, sendo que um delas é de facto a empresa de telecomunicações com sede em Angola de que Isabel Santos é accionista.

A Vidatel é uma companhia offshore registada nas Ilhas Virgens Britânicas que tem como beneficiária Isabel dos Santos, e através da qual ela detém 25% da Unitel em Angola. Esta offshore tornou-se conhecida mais tarde por estar no epicentro de uma disputa judicial internacional sobre a distribuição de dividendos daquela operadora de telecomunicações, com os advogados de uma outra accionista da Unitel, a operadora brasileira Oi, a acusarem a filha de José Eduardo dos Santos de apropriação ilegal de fundos, com a empresária a ter conseguir transferir em outubro de 2015 um total de 238 milhões de euros da conta da Vidatel no BPI poucas horas antes dessa conta ter sido congelada por uma ordem de arresto de um tribunal das Ilhas Virgens Britânicas.

Ao ICIJ o Standard Chartered reforçou a ideia que leva de forma “extremamente séria” a “responsabilidade de combater a criminalidade financeira”, tendo investido substancialmente nos seus programas de compliance.  EXPRESSO

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