Sexta, 29 de Março de 2024
Follow Us

Sábado, 06 Janeiro 2018 08:14

Até tu, Bornito de Sousa?!

Esmiuçados os contornos todos do folhetim entre Bornito de Sousa e João Lourenço, concluímos que na realidade ambos são rivais do tipo cão e gato, o que já vem de longe

Por Severino Carlos / CA

Desde tempos remotos que ouvimos personalidades traídas por pessoas que lhes são próximas usarem a célebre expressão “Até tu, Brutus?”. A expressão remonta à Antiguidade e é atribuída ao imperador romano Júlio César que assim se pronunciou ao ser vítima de uma conspiração de senadores para tirá-lo do cargo. César acabou morto a punhaladas nesse complô. E quando sucumbia, o imperador romano reconheceu entre os seus algozes um sobrinho adoptivo, Marcus Brutus. Completamente surpreendido, antes de expirar o imperador exclamou: "Até tu, Brutus, filho meu?!".

Ora, a mais recente cerimónia de cumprimentos de fim de ano ao Presidente da República foi marcada por um episódio que surpreendeu o país político que viu no discurso do vice-presidente Bornito de Sousa um acto de autêntica traição a João Lourenço, que poderia ter levado o Chefe de Estado angolano a exclamar também “Até tu, Bornito de Sousa?!”.

Seria assim apenas se João Lourenço não soubesse, de cor e salteado, o quanto a casa gasta. A verdade é que o Presidente angolano não teria porquê mostrar-se surpreendido com a atitude do seu “vice”, Bornito de Sousa. A ter havido surpresa, isso teria acontecido antes, quando João Lourenço tomou conhecimento de quem seria o seu lugar-tenente na presidência angolana.

Realmente pode dizer-se, literalmente, que a corrente entre as duas primeiras figuras da hierarquia do Estado angolano não passa. Em linguagem popular são rivais do tipo cão e gato, algo que é atestado por episódios de desinteligências ocorridos no passado.

João Lourenço e Bornito de Sousa colocaram-se de costas viradas, sobretudo por altura dos preparativos do Congresso do MPLA que se realizaria em finais de 2003, quando o primeiro, na qualidade de secretário-geral do partido dos “camaradas”, saía inteiramente da casca e mostrava que não desdenharia nada ser o sucessor de José Eduardo dos Santos (JES). Tamanha ousadia culminou com uma séria pastilha que levou do “chefe máximo”, que o pôs a gramar uma forçada e prolongada travessia no deserto, sendo quase excomungado das estruturas do Estado e do MPLA.

Enfim, essa história é sobejamente conhecida. Mas o que quase não saltou para o domínio público, ou pelo menos poucos se lembrarão disso, foi exactamente o “quiproquó” que houve entre o então secretário-geral e aquele que era à época o líder da bancada parlamentar, Bornito de Sousa.

Quando ia no auge o sonho que ia alimentando de se ver no cargo de Presidente da República, a certa altura João Lourenço resolveu deixar-se de subtilezas e atirar-se praticamente a campo descoberto. Isso levou-o a jogar em antecipação, mas de forma imprudente. Ele que na época não tinha propriamente a paciência entre os seus predicados – por alguma razão na sede do MPLA era na altura conhecido pela alcunha de “Myke Tison, o trungungueiro” – não esperou pela anuência de JES e dedicou-se a procurar criar obstáculos às figuras do partido que achava que seriam seus concorrentes ao cargo de líder do MPLA e, concomitantemente, ao de Chefe de Estado.

Usando da prerrogativa de ser o secretário-geral começou por procurar bloquear a ascensão ao Comité Central da figura de Aguinaldo Jaime e, de alguma forma, também a de José Pedro de Morais – ambos com maior visibilidade dentro da equipa económica do Governo do que a sua mulher, Ana Dias Lourenço, na altura ministra do Planeamento.

Mas João Lourenço não se ficou apenas por montar estalas a estes dois. Na sua cavalgada atracou-se ao então chefe da bancada parlamentar, Bornito de Sousa, a quem endossou a factura relativa à ausência de Lopo do Nascimento, Marcolino Moco e França Van-Dúnem da lista de candidatos ao CC. Afastados das estruturas de direcção do MPLA, os “três malditos” faziam nova tentativa de retorno, mas um famoso comunicado do Bureau Político viria a barrar esse propósito.

Quando Lopo do Nascimento contestou o comunicado com uma carta publicada no Jornal de Angola, gerou-se um sururu que forçou João Lourenço a procurar alijar as responsabilidades – ele que na verdade havia sido o arquitecto do impedimento do regresso dos “três malditos” – endossando-as a Bornito de Sousa, quando este defendia exactamente o retorno do trio excomungado.

Coincidentemente ou não, a trama contra o líder da bancada parlamentar aconteceu sobretudo quando a João Lourenço constou que a JES não repugnaria a ideia de passar o testemunho a Bornito de Sousa. Este que ainda para mais estaria, em círculos internos do partido, bem cotado como um dos potenciais sucessores de JES. O seu nome passara a figurar obrigatoriamente entre os hipotéticos candidatos aos cargos de vice-presidente e de secretário-geral do MPLA.

Ganhava assim campo a suspeita de que o principal beneficiário de tal manobra seria o próprio João Lourenço, que procuraria tirar do caminho não só os três exconjurados, como também um potencial rival, Bornito de Sousa, fazendo com que fosse publicamente crucificado pelo Bureau Político, o órgão de cúpula do partido. Ao lançar-se contra Bornito de Sousa, João Lourenço não se eximiu de recorrer a esquemas e intrigas que deitaram por terra uma relação entre ambos que podia considerar-se de certo modo cordata e vinha desde os tempos em que haviam pertencido à Direcção Política Nacional das FAPLA.

Seria ingenuidade da parte de qualquer analista da política doméstica supor que Bornito de Sousa seja um “santo” e que tenha passado uma esponja sobre o episódio de má-fé protagonizado por João Lourenço há 14 anos.

Ora, Bornito não só não terá esquecido, como ainda por cima se tornou com o passar do tempo um declarado “eduardista”. Ou seja, um defensor do antigo Presidente da República, como se revelou, sem pieguices nem meias-tintas, na mensagem que dirigiu a João Lourenço, durante o acto de cumprimentos de fim de ano.

Além do mais, não sendo “santo” algum, é de calcular que Bornito de Sousa, colocado eventualmente no pelotão de dirigentes do MPLA que mais se aboletaram do erário durante o regime eduardista (recorde-se que há coisa de dois anos foi protagonista de um rumoroso caso, ao fazer casar uma de suas filhas com um vestido que custou o opíparo montante de 200 mil dólares), não veja com agrado as promessas de combate à corrupção que têm sido arremessadas pelo novo Presidente da República – hoje seu chefe, mas seu inimigo num passado que provavelmente ainda estará bem vivo na sua retina.

Hoje é legítimo mesmo que as pessoas se interroguem como o nome de Bornito de Sousa foi aparecer como aquele que seria o “imediato” do futuro PR, um arranjo que tem de facto muito de contranatura. É fácil chegar à conclusão que essa não terá sido uma opção voluntária de João Lourenço, mas algo imposto pelo próprio JES – do que se deduz igualmente que Bornito de Sousa terá sido uma aposta do antigo PR para funcionar como uma espécie de “back-up” junto de João Lourenço.

De resto, também não custa cogitar que, agastado com os episódios ocorridos em 2003 – ou mesmo porque também alimente eventualmente o sonho de chegar ao cadeirão presidencial –, Bornito de Sousa tenha aceitado o papel de “submarino” colocado por José Eduardo dos Santos junto do novo Presidente da República. E sintomático disso mesmo terá sido sido o zelo extremado com que se mostrou nesse papel, ao “presentear” João Lourenço com um discurso completamente alinhado à ala “eduardista”. Consta mesmo nos bastidores que esse discurso teria sido escrito directamente pela ala eduardista e Bornito de Sousa apenas tratou de o ler.

Rate this item
(0 votes)