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Domingo, 19 Novembro 2017 19:08

Análise: Purga em Luanda atinge clã Eduardo dos Santos

O despedimento de Isabel dos Santos mostra que João Lourenço está a aproveitar o apoio popular para consolidar o poder, afirmam os analistas.

O cartoonista Sérgio Piçarra, que há mais de vinte anos retrata os episódios da vida política e social em Angola, reagiu esta quarta-feira ao despedimento de Isabel dos Santos da presidência da Sonangol com o humor satírico a que já habituou os fãs. No Facebook, Piçarra perguntou ao presidente José Lourenço: “Queres me tirar o pão? Se tudo continuar a kuiar [correr bem] assim vou desenhar lá mais quê?”

O episódio ilustra como a decisão de Lourenço de exonerar a filha mais velha de José Eduardo dos Santos de um dos cargos mais importantes em Luanda é a mais recente e, porventura mais importante, de uma série de medidas de ruptura com o seu antecessor e que tem sido bem recebida pela maioria dos angolanos. No mesmo dia, Lourenço tinha também terminado o contrato de concessão do Canal 2 e da TPA Internacional com a Semba, empresa controlada por outros dois filhos de Eduardo dos Santos.

Paulo Guilherme, editor do Africa Monitor, publicação de análise estratégica, explica que as decisões mostram que “Lourenço está claramente apostado na sua afirmação pessoal e política, tem a opinião pública e grande parte do partido do seu lado, e está disposto a nada menos do que o exercício pleno dos poderes”.

Após a tomada de posse a 26 de setembro, o novo presidente tem agido de forma rápida e a subsitituição do board da Sonangol representa mais um passo para se distanciar das decisões de Eduardo dos Santos, que esteve cerca de 38 anos no poder.

“A primeira prioridade de João Lourenço foi iniciar as reformas estratégicas em áreas como a indústria petrolífera e o despedimento de Isabel dos Santos faz parte de um padrão mais alargado para impulsionar as reformas económicas e a consolidação do poder,” sublinha Alex Vines, analista da Chatham House, um think tank de assuntos internacionais.

“Corte a direito”

Os dois analistas tinham expetativas diferentes sobre o timing do despedimento – Vines previa que ocorresse em 2018 e Paulo Guilherme apontava para uma saída até final deste ano, mas por acordo mútuo. As posições convergem, no entanto, sobre o facto de os eventos dos últimos 50 dias indiciarem que Isabel dos Santos não iria terminar o mandato. “Lourenço tomou decisões que colocavam em cheque aquele que tem sido o papel da presidente da Sonangol, nomeou para secretário de Estado dos Petróleos um especialista do sector – Carlos Saturnino – que Isabel dos Santos tinha despedido em dezembro e recebeu pessoalmente representantes das principais petrolíferas estrangeiras a operar no país, quebrando uma tradição de ser a Sonangol e/ou o Governo a dirimir questões entre as partes”, frisa Guilherme.

Para o analista do Africa Monitor, há cinco fatores que levam Lourenço a fazer “um corte a direito em relação à era de José Eduardo dos Santos”. O primeiro é a própria afirmação política, surpreendendo alguns que esperavam um atitude mais cautelosa. O segundo e o terceiro estão ligados: o “esmagador apoio em relação a uma mudança, dada a crise económica”, e a necessidade de controlar essa grave crise ao tomar controlo das duas empresas que mais contribuem para os cofres do Estado – a Sonangol e a diamantífera Endiama, cuja liderança substituiu no ínício de novembro.

O quarto têm a ver com a oportunidade criada pelo estado de saúde de Eduardo dos Santos, que reduz a possibilidade de um contra-ataque, enquanto o último é sobre a vontade “de mostrar, para o exterior, que estão a ser dados passos efetivos de combate ao nepotismo e falta de transparência na gestão pública”.

Paulo Guilherme salienta que João Lourenço já traçou o rumo: combate à corrupção, monopólios, despesismo e abertura da comunicação social, entre outros. Acrescenta que até a oposição se demonstra a favor de várias medidas, explicando que ao mesmo tempo que o presidente quer retirar José Filomeno dos Santos do Fundo Soberano, a UNITAquer criar uma comissão parlamentar de inquérito à gestão do organismo.

No entanto, o analista alerta que embora o discurso, as prioridades sejam e o estilo de governação sejam novos, o país ainda é o mesmo. “E esse é o verdadeiro desafio, uma coisa é falar contra a corrupção, outra é ter instituições que a previnam e um aparelho judiciário actuante – o que, contra os poderosos, nunca o país teve”.

Mau relacionamento?

Isabel dos Santos rejeitou esta quinta-feira as críticas do grupo de trabalho criado por João Lourenço para apresentar propostas para melhorar o desempenho do setor petrolífero e que apontou a ausência de liderança e estratégia na Sonangol e mau relacionamento com a companhias internacionais.

João Lourenço apelidou esta quinta-feira a Sonangol de “galinha de ovos de ouro” do país, mas Isabel dos Santos explicou que quando chegou à empresa, em junho de 2016, encontrou uma situação “dramática” e de “pré-falência”. Adiantou que contribuiu para reformar a empresa e deixou o cargo com um financiamento de dois mil milhões de dólares assegurado.

Os analistas dizem, no entanto, que a saída da empresária deverá acabar por ser positiva para a estatal angolana.
“Aindústria petrolífera está otimista, embora de forma cautelosa, que o ritmo das reformas na Sonangol poderá agora acelerar”,refere Alex Vines. “João Lourenço tem sido bastante mais interventivo [que José Eduardo dos Santos], reúne com petrolíferas internacionais, ouve as preocupações e olha para como fazer reformas e obter maior eficiência”.

Esse diálogo acabou por colocar Isabel dos Santos sob pressão crescente, mas havia outros fatores internos que também prejudicaram a posição da filha do ex-presidente.

Segundo Paulo Guilherme, o despedimento vai acabar com “algum mal-estar” que existia em relação ao peso dos consultores estrangeiros na gestão da empresa – a maior parte portugueses, mas também ingleses e de outras nacionalidades.

“A administração é, agora, claramente angolana, e isso contribuirá para eliminar alguma conflitualidade interna que se vinha sentindo. A ‘saúde’ financeira da Sonangol não é boa, como comprovam as dívidas aos operadores petrolíferos estrangeiros, a título de cash calls, mas isso dependerá menos de quem é o presidente da empresa do que da subida ou descida do preço do petróleo nos mercados internacionais”, vinca.

Esperar para ver

Questionados sobre os impactos da mudança na liderança da Sonangol nos ativos detidos pela empresa em Portugal, especialmente uma participação de 15,24% no BCP e uma posição indireta na Galp (neste caso em parceria com Isabel dos Santos), os analistas dizem que é ainda cedo para fazer previsões.

“Teremos de esperar para ver qual é o rumo concreto traçado pela nova administração. Ambos os investimentos referidos foram sempre assumidos como estratégicos e de longo prazo para a Sonangol, e não há razões para acreditar que deixem de o ser”, explica Paulo Guilherme.

“Duas coisas parecem-me certas, dada aquela que tem sido a orientação do novo presidente – haverá uma maior pressão para capitalização desses investimentos (dividendos e outros) – e o alinhamento da política de investimentos da Sonangol com a do universo empresarial de Isabel dos Santos acabou definitivamente”, acrescenta.

Alex Vines relaciona a resposta com as características do processo político angolano.

“O tempo dirá – isto é política transicional e embora o ritmo esteja a acelerar, João Lourenço precisa de equilibrar as coisas”, diz. “O estilo de mudança em Angola é sempre aos solvancos”, conclui o analista do Chatham House.

Jornal Econômico

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