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Quinta, 16 Novembro 2017 00:09

“Oiço gente dizer que com João Lourenço finalmente chegou a independência”

Menos de três meses depois de ter sido eleito, e menos de dois desde a tomada de posse, João Lourenço acaba de desferir o maior golpe imaginável contra o clã de José Eduardo dos Santos.

No mesmo dia em que pôs fim aos contratos de gestão de dois canais de televisão públicos com empresas de dois filhos do homem que foi Presidente desde 1979, o novo chefe de Estado afastou da presidência da Sonangol aquela que chegou a ser apontada como herdeira política do pai, Isabel dos Santos.

Os golpes vinham-se sucedendo, um a um e com alguma discrição, ora em áreas chave da economia e finanças, ora no sector dos media.

O primeiro golpe a atingir Isabel dos Santos aconteceu com o afastamento dos responsáveis da Sodiam, a sociedade de comercialização de diamantes, filial da Endiama (Empresa Nacional de Diamantes), com João Lourenço a retirar a presidência da empresa a Beatriz Jacinto de Sousa, tida como próxima de Isabel dos Santos, que tem ela própria negócios neste sector (com destaque para a empresa De Grisogono). Seguiu-se a exoneração de um aliado de Dos Santos, e recém-nomeado por este para a liderança da própria Endiama, Carlos Sumbula.

A semana passada soube-se que Lourenço exonerou as administrações de todas as empresas públicas de comunicação social, tal como a administração da Empresa de Ferro (Ferrangol), concessionária do sector mineiro do país. Outro aliado de “Zédu” (como é tratado o ex-Presidente), o governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe, foi também afastado e substituído por José de Lima Massano. Falta saber se haverá consequências futuras das mudanças, com auditorias a empresas públicas como a Sodiam.

Na verdade, a nomeação mais relevante terá sido mesmo a de Carlos Saturnino, que há exactamente um mês foi chamado a ocupar o cargo de secretário de Estado dos Petróleos com a tarefa de coordenar um estudo sobre a reforma no sector que João Lourenço encomendara dois dias antes, a 13 de Outubro.

O relatório tinha 30 dias para estar pronto e deveria ser apresentado ao Presidente esta semana – segundo escreve o correspondente do Expresso em Luanda, o estudo “destapa falhas estruturais clamorosas e incumprimentos” na gestão do sector e da maior empresa do país. Em causa está principalmente a relação da empresa com as petrolíferas estrangeiras a operar em Angola – Saturnino tem uma longa experiência na empresa, conhecendo bem a lógica de funcionamento dos operadores internacionais.

Ora, Saturnino tinha sido afastado da presidência da Sonangol Pesquisa e Produção em Dezembro do ano passado, de forma abrupta, precisamente por Isabel dos Santos. Agora, é Saturnino que substitui a mulher mais rica de África no lugar onde esta tinha sido colocada pelo pai.

Para além de Isabel dos Santos, foram exonerados todos os membros do conselho de administração da Sonangol, ao mesmo tempo que Saturnino já conhece a sua equipa. Entre os vários membros do novo conselho de administração está Luís Ferreira do Nascimento José Maria, ao que tudo indica, um dos nomes que surgiram recentemente associados a uma acusação deduzida pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) contra sete arguidos portugueses.

De acordo com o DCIAP, a Sonair (empresa de aviação da Sonangol) pagou elevadas somas à TAP durante quatro anos (até 2013) pela manutenção aos seus aviões, serviço que nunca foi feito. O esquema passava pela circulação de dinheiros públicos angolanos através de entidades offshore que iam depois parar às mãos de gente ligada ao universo da Sonangol, incluindo, como diz o Ministério Público, Luís Ferreira do Nascimento José Maria.

“Resgate nacional”

“São acontecimentos de grande simbolismo e com potencial de mudança importante”, diz Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro angolano e ainda membro do MPLA (partido de Dos Santos e Lourenço), muito crítico da presidência de “Zédu”. “Como se diz em Portugal, não podíamos bater mais fundo. Principalmente nos últimos 15 anos, desde a paz, o Presidente Dos Santos amarrara a si todos os pilares da economia. Depois, de um dia para o outro, tomou conta de toda a comunicação social”, acusa Moco.

João Lourenço “tinha de tomar estas decisões ou seria um nado-morto”, defende o antigo dirigente, o que não quer dizer que “isto não demonstre coragem”. Para Marcolino Moco, o que está em causa é uma espécie de “resgate nacional”, que passa por “repor os mínimos do aceitável”. “Aqui, em Luanda, há dias que oiço gente dizer que com João Lourenço finalmente chegou a independência”.

Nem todos os observadores são tão optimistas. Muitas destas decisões parecem acima de tudo pragmáticas tendo em conta o estado da economia. Evidentemente, “também são uma mensagem à família Dos Santos, que fica a saber que já não conta com o patrocínio presidencial”, diz o especialista da Chatham House Alex Vines.

A cúpula do MPLA

Com um país em acelerada mudança demográfica e social, Vines notava nesta quarta-feira que “as mudanças estão a ser alvo de intenso debate nas redes sociais”. Por outro lado, diz que “é demasiado cedo para saber” se as mudanças no sector dos media visam um jornalismo futuro livre e independente ou apenas um jornalismo que não seja tão directamente controlado por quem está (ou esteve) no poder.

Ao mesmo tempo que este ataque ao topo do clã demonstra coragem, também é verdade que conta com o apoio do conjunto da oposição. Por saber está ainda que poder conserva Dos Santos no secretariado do Bureau Político do Comité Central do MPLA, partido que ainda dirige. Moco acredita que “já só conta com alguns dinossauros”, bastante menos do que a maioria dos seus 14 elementos (dois deles são Dos Santos, que o preside, e Lourenço, vice-presidente). Vines diz que a família terá de “construir novas alianças”.

Para já, há um Dos Santos que mantém um cargo de respeito no país, José Filomeno, responsável pelo Fundo Soberano. O que não significa que assim continue: para já, no início do mês, o Governo rescindiu o contrato de concessão com a empresa que tinha o monopólio das análises laboratoriais de alimentos. Trata-se da Bromangol, empresa com ligações a Filomeno dos Santos.

O estado da economia angolana tornava estas mudanças estratégicas e urgentes

Director do Programa para África do think tank Chatham House, Alex Vines descreve os acontecimentos em Luanda como os mais urgentes de uma “transição de longo prazo”.

Depois das notícias desta quarta-feira, com a exoneração de Isabel dos Santos da Sonangol e com o fim dos contratos das empresas Westside e Semba, de dois dos seus irmãos, para a gestão de dois canais da TPA (Televisão Pública de Angola), o único membro do clã Dos Santos ainda em lugar de destaque é José Filomeno dos Santos, responsável pelo Fundo Soberano. É o próximo na lista do Presidente ou há motivos para adiar esta decisão?

Isto que está a acontecer é política de transição. As substituições, há algumas semanas, do governador do Banco Nacional de Angola (um aliado de Dos Santos), do chefe da companhia estatal de diamantes Endiama e agora de Isabel, da Sonangol, são parcialmente pragmáticas. Em todos estes casos eram precisas reformas adicionais e o estado da economia angolana tornava-os alvos estratégicos para serem reformados e se poder desenvolver o país a partir daí. Novas nomeações, como a de José Massamo para o BNA, e a escolha, em Outubro, de Carlos Saturnino para secretário de Estado do Petróleo à frente de uma revisão de 30 dias ao sector, demonstram como as reformas do petróleo e fiscal serão importantes para a administração [de João] Lourenço. Também é uma mensagem à família Dos Santos, que fica a saber que terá de demonstrar capacidades técnicas e já não conta com o patrocínio presidencial.

E o Fundo Soberano não é uma prioridade, apesar das polémicas em que está envolvido?

O conjunto das mudanças será cuidadosamente executado, já que em causa está uma transição de longo prazo. Na verdade, eu acredito que “Zenu” [Filomeno dos Santos] pode ser deixado em paz, pelo menos por agora — o FSDEA [Fundo Soberano de Angola] é muito menos estratégico do que estas áreas onde se está a mexer. É uma questão de timing e de não se tratar de uma reforma tão urgente. O Fundo tem estado a fazer dinheiro — a questão é mais saber onde é que o dinheiro desse lucro é investido.

Esperava-se que estas mudanças demorassem um pouco mais, mesmo porque José Eduardo dos Santos se mantém na liderança do MPLA até ao próximo ano. O Presidente João Lourenço sentiu que tinha apoio suficiente dentro do partido? E tem ou ainda é possível uma reacção do clã?

As reformas são demasiado urgentes. E ele já provou que consegue avançar com mudanças em áreas estratégicas como o petróleo e confrontar a família Dos Santos mesmo se José Eduardo continua chefe do partido. Os Dos Santos terão de construir novas alianças — Welwitschia [“Tchizé” dos Santos] é deputada do MPLA e activa politicamente. Eles ainda estão “protegidos”, com o pai na liderança. Dos Santos e o MPLA puseram-se de acordo para a transição — Dos Santos afastou-se e Lourenço não quer pôr isso em causa.

PUBLICO

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Last modified on Quinta, 16 Novembro 2017 00:40