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Sábado, 15 Outubro 2016 15:19

A corrupção da Odebrecht em Angola não é exclusiva da presidência do Lula - Rafael Marques

Odebrecht faz isso há décadas, diz jornalista angolano sobre corrupção Odebrecht faz isso há décadas, diz jornalista angolano sobre corrupção

BRASÍLIA -  Jornalista dedicado a investigar casos de corrupção do governo de Eduardo dos Santos, Rafael Marques de Morais viu nas operações que apuram corrupção no Brasil uma oportunidade. Em Rafael Marques de Morais entrevista ao Valor, ele diz que as denúncias envolvendo construtoras e autoridades brasileiras lhe permitirão acessar dados que ele jamais teria a “opacidade” das empresas e do governo de seu país.

À frente do site “Maka Angola”, uma referência no tema corrupção no país africano, Morais participa neste sábado de um evento em São Paulo, a convite da Agência Pública, com o apoio da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Ele chega ao Brasil coincidentemente na semana em que o ex-presidente Luíz Inácio Lula da Silva virou réu pela terceira vez, acusado pelo Ministério Público Federal de cometer irregularidades em financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a empreiteira Odebrceht tocar obras em Angola, no âmbito da Operação Janus. 

“A única surpresa é por que demorou tanto tempo”, disse ele ao Valor, sobre as denúncias. “A Odebrecht faz isso há décadas.” 

Sobre Lula, ele diz que há uma “decepção” dos angolanos por sua proximidade com o presidente Eduardo dos Santos, que em sua opinião é um notório corrupto. E com a Odebrecht, que ele descreve como “a empresa do presidente” angolano, dada a promiscuidade na relação com o mandatário, há 37 anos no poder. 

Para o jornalista, hoje os angolanos percebem o Brasil “como um país que foi a Angola simplesmente ajudar o presidente a saquear o próprio povo”.

Procurada, a empresa ainda não se pronunciou. 

Leia trechos da entrevista: 

Valor: O já sr. disse, quando questionado se Angola é democracia ou ditadura, que o regime vigente no país é o do "saque".Qual é a participação da Odebrecht nisso? 

Rafael Marques de Morais: A multinacional que foi considerada íntima do presidente é a Odebrecht. Desde sua instalação em Angola, a Odebrecht tem sido considerada como uma multinacional íntima. Há uma relação promíscua entre o presidente e a Odebrecht.

Valor: Como assim?

Morais: A Odebrecht faz parte do conselho de curadores da fundação do presidente angolano [Fundação Eduardo dos Santos] e toda o envolvente marketing social e político tem muito a ver. A própria publicidade que a Odebrecht faz em Angola a celebrar sua presença lá tem muito a ver também às vezes com campanhas políticas a favor do governo e do presidente. Há também coisas muito concretas. A Odebrecht celebrou, por exemplo, várias parcerias com dirigentes angolanos que são muito próximos do presidente da república. 

Valor: Por exemplo? 

Morais: Por exemplo, o general Leopoldino Fragoso, que tem o projeto da Biocom, que é um projeto corrupto em que se utiliza a Epson Angola, , empresa estatal de petróleo, se utiliza essa linhas de crédito do Brasil para fomentar projetos de ´produção de etanol, que não é mais do que um esquema de branqueamento de capitais [lavagem de dinheiro].

Valor: Essa parceria é ilegal? 

Morais: A parceria é ilegal. Num país normal, a Odebrecht teria que ser investigada por estabelecer uma parceria corrupta com dirigentes angolanos. Mas a Odebrecht se beneficia da impunidade que o presidente confere a todos aqueles que fazem negócios consigo, com sua família e com membros próximos de seu regime.

Valor: Há provas disso? 

Morais: Sim, claro! Isso é fruto de uma investigação que eu publiquei. Não estou a lançar dados sobre os quais eu eventualmente tenha ouvido falar. Inclusive já houve um parecer da Procuradoria Geral em Angola.

Valor: Aqui no Brasil, o MPF suspeita que algumas hidrelétricas construídas ou ampliadas pela Odebrecht em Angola tenham sido superafaturadas. Isso tem sido investigado lá? 

Morais: As obras da Odebrecht estão sempre envolvidas em grande opacidade, principalmente porque não aconteceram concursos públicos [licitações]. E sabemos que tanto a barragem de Cambambe como a de Capanda, que levaram bilhões de dólares em financiamentos do Brasil, não geram a energia elétrica que se tinha prometido no início do projeto. 

Valor: Te surpreenderam essas denúncias do Ministerio Público brasileiro?  Morais: A única surpresa é por que demorou tanto tempo. Valor: Você chegou a olhar as denúncias do Ministério Público?

Morais: Sim, sim. A Odebrecht faz isso há décadas. A única surpresa para o povo angolano é o fato de só agora essa informação estar a vir a público. 

Valor: Essa denúncia foi muito contundente contra o ex-presidente Lula. Como o sr. vê a atuação de Lula a favor da Odebrecht em Angola?

Morais: Os sucessivos presidentes brasileiros que lidaram com o presidente angolano, que está no poder há 37 anos, sempre tiveram uma atenção especial para com a Odebrecht. Porque a Odebrecht sempre foi a verdadeira embaixada do Brasil em Angola. Depois das telenovelas, o que os angolanos tinham como referência era a Odebrecht. A única diferença entre os presidentes anteriores a Lula é que o Lula presidiu o Brasil numa altura de um boom petrolífero no Brasil e em Angola. Então, havia muito mais dinheiro em Angola para beneficiar, muito mais dinheiro no Brasil para promover as linhas de crédito quer para Angola ou outros países africanos. E havia muito mais dinheiro para empresas brasileiras investirem em Angola. A corrupção da Odebrecht em Angola não é exclusiva da presidência do Lula. Simplesmente, calhou haver mais dinheiro e mais escrutínio sobre sua ação em Brasil.  

Valor: Como o sr. descreve a relação do Brasil com Angola?

Morais: Angola sempre serviu de comedouro para os diferentes interesses específicos brasileiros. É um lugar na África que não despertava atenção da mídia e da sociedade brasileira. Hoje, em uma situação de grande disputa política no Brasil, entre os partidos políticos à esquerda e à direita, a questão de Angola ganhou proeminência porque serve de arma de arremesso contra Lula da Silva. Mas o fundamental é que este processo judicial sirva também para desmistificar a participação do presidente e de dirigentes angolanos em atos de corrupção que são de lesa-pátria em angola e que levaram os angolanos a ter ideia do Brasil como um país que foi a Angola simplesmente ajudar o presidente a saquear o próprio povo. 

Valor: Independentemente do 'timing' em que essas denúncias apareceram, há indícios de que o dinheiro do BNDES foi lavado nessa obras para fazer de caixa 2 no Brasil?

Morais: Isso eu não tenho dúvida. Os esquemas são sempre corruptos. O estranho seria que esse dinheiro tivesse sido bem aplicado. 

Valor: O sr. já ouviu falar da Exergia Brasil, a empresa que dizem ser do sobrinho do ex-presidente Lula?

Morais: Não conheço, nunca investiguei esse senhor que é tratado na imprensa como sendo o sobrinho do Lula. Mas o que é certo é que esse tipo de  esquemas sempre foram comuns em Angola. Eu me lembro do caso do ex-ministro português, José Sócrates, que também está sob investigação e foi indiciado também por negócios que envolvem Angola. Mas tal como no Brasil, em Portugal os principais partidos políticos vão todos lá comer, de uma ou de outra forma. 

Valor: Como foi a licitação para essas hidrelétricas da Odebrecht em Angola?

Morais: Essas hidrelétricas também fazem parte da linha de crédito. Durante a construção da barragem de Laúca, a Odebrecht cedia parte de seus equipamentos para fazer a fazenda do ministro de Águas e Energia de Angola [João Baptista Borges]. A questão que se coloca é: a Odebrecht estava a fazer isso com um favor, como pagamento de propina ou o quê?

Valor: Há suspeitas semelhantes aqui em relação ao ex-presidente, que teria tido um sítio reformado por empreiteira. Em Angola há outras histórias semelhantes de empreiteiras brasileiras fazendo favores a autoridades?

Morais: É a coisa mais comum. E agora em Angola, com a corrupção institucionalizada, os jornalistas desistiram de ir atrás. Agora, com essa oportunidade que a Lava-Jato oferece, penso que essa informação agora será importante porque ajudará a provar a grande confusão que tem feito a Odebrecht em Angola e outras empresas brasileiras.

Valor: As palestras que  o ex-presidente Lula diz ter feito em Angola efetivamente ocorreram?

Morais: As palestras de fato existiram, estão no Youtube, é só ver. O que eu posso dizer é a sensação que se tem em Angola. No momento em que o Lula foi a Angola pela mão da Odebrecht para fazer conferências na fundação do presidente angolano,que é um indivíduo extremamente corrupto, a visão que se tinha do Lula em Angola alterou-se. Foi uma grande decepção.  

Valor: Por quê? 

Morais: Porque se percebeu que um homem que tinha a reputação do Lula, de presidente dos pobres, ao envolver-se com a Odebrecht e com o presidente, não poderia dali resultar algo de probo, algo de produtivo, quer para Angola, quer para o Brasil. Dos outros presidentes, dos anteriores governos, não se esperava nada. Mas do Lula havia essa esperança, precisamente por sua popularidade, que se faria mais contra a corrupção. É precisamente neste momento que a relação Brasil-Angola cresceu, mas cresceu de forma que exponenciou também a corrupção.

Valor: Como assim? 

Morais: Exponenciou porque é na época do Lula que há um aumento da exploração do petróleo, dos preços do petróleo, e há um boom no Brasil e um boom em Angola. Então, é mais uma coincidência, de haver mais disponibilidade de dinheiro em um e outro país, que levou a isso.Porque a Odebrecht sempre se beneficiou de uma relação especial, sempre foi uma espécie de elo entre Angola e o Brasil, da forma mais obscura possível. Na época do Lula é a época em que há mais dinheiro. Há mais obras para a Odebrecht, e obras mais caras. É mais essa coincidência que veio potenciar os esquemas do que propriamente a presença do Lula. Porque os outros também não eram diferentes. 

Valor: Tinha mais dinheiro circulando, tinha mais dinheiro para roubar. É isso? 

Morais: É basicamente isso.

Valor: E essas palestras foram pagas pela Odebrecht, certo? 

Morais: Sim, e isso foi muito publicitado. E é isso que causou alguma decepção aos angolanos. Como é que o Lula, com a reputação que tinha, poderia ir a Angola pela mão da Odebrecht falar na fundação do presidente, que sempre foi vista como um outro veículo de branqueamento da imagem do presidente, e um veículo que sempre absorveu recursos do Estado? É uma fundação que sempre usou recursos do Estado e sempre obrigou multinacionais como a Odebrecht e as petrolíferas a serem membro de seu conselho, para haver depósitos diretos dessas empresas para os cofres do presidente, por via supostamente do trabalho de sua fundação.

Valor: A fundação também seria um instrumento de lavagem de dinheiro por parte de seu presidente?

Morais: A fundação tem uma grande representação aqui no Rio de Janeiro. E o presidente da fundação, durante muito tempo, era o cônsul-geral de Angola no Rio de Janeiro [Ismael Diogo]. Como é que um presidente em exercício do poder faz uma fundação para ter representação num país estrangeiro.

Valor: Cônsul do Rio? 

Morais: Já não é cônsul, agora é o primo da primeira-dama de Angola que é o cônsul-geral. Mas durante muitos anos o CG no Rio era também o presidente da fundação Eduardo dos Santos no Brasil.

Valor: Isso denota algo suspeito? 

Morais: Obviamente. Como pode exercer um cargo diplomático e ao mesmo tempo de uma fundação privada? Aliás, o Itamaraty não deveria ter permitido isso. Mas permitiu, fechou os olhos. E como a fundação de um presidente em exercício funciona no Brasil? Isso deve ser investigado.

Valor: O sr. acredita que pode haver lavagem de dinheiro? 

Morais: Investiga e vai ver que não tem coisa boa, porque está aqui a fazer o que no Brasil? A contribuir para a sociedade civil brasileira? 

Valor: Como eram as reuniões da Odebrecht com o governo? Era direto com o presidente Eduardo dos Santos?

Morais: Sim, era direto com o presidente. A Odebrecht era conhecida como a empresa do presidente. Era mais fácil tratar com o governo angolano passando pela Odebrecht do que passando pela embaixada. 

Valor: Que impactos essas denúncias pode ter no combate à corrupção em Angola?

Morais: Esse processo, independentemente de toda a teatralidade política que se gerou aqui no Brasil em volta do Lula e do impeachment da Dilma, vai servir para os angolanos refletirem sobre as parcerias que o presidente estabelece com várias empresas estrangeiras e o seus associados com políticos estrangeiros. 

Valor: E na relação entre os Brasil e Angola?  

Morais: Brasil  Portugal sempre foram os grandes pilares diplomáticos de Angola, ao nível do encobrimento desses esquemas de corrupção. Hoje, vê-se que o Brasil não vai poder manter essa posição por muito tempo por conta desses escândalos. E isso, eventualmente, deverá levar a uma reavaliação sobre as relações entre os dois Estados, para que haja um entendimento maior sobre como o Brasil pode investir em Angola de forma honesta, aberta e que isso seja para benefício mútuo dos dois países.

Valor Econômico

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