Quinta, 28 de Março de 2024
Follow Us

Sábado, 03 Março 2018 12:33

Caso Manuel Vicente: As manobras do advogado de Angola

Paulo Blanco tinha um plano para montar um banco no Dubai, acedeu a escutas de outro processo e mandou-as para Angola. E sugeriu que a Sonangol fosse usada para controlar movimentos de clientes no BCP. Está a ser julgado por corrupção do procurador Orlando Figueira no caso que envolve Manuel Vicente.

A carta de duas páginas dirigida ao procurador-geral da República de Angola (PGRA) João Maria de Sousa tem a data de 25 de Maio de 2012. O advogado Paulo Blanco classificou-a como "confidencial", o que se percebe porque o assunto era bastante polémico e delicado: o envio do registo áudio de uma escuta telefónica de um processo judicial português, com o advogado a garantir que tinha até procedido "à respectiva transcrição" para facilitar a vida ao general que mandou durante 10 anos no Ministério Público angolano (2007/2017) e que se tornou também no angariador dos principais clientes de Blanco. 

"Pessoa amiga de Angola fez-me chegar, anonimamente, o CD-Rom que infra anexo", escreveu o advogado, no documento apreendido pela Polícia Judiciária na Operação Fizz, garantindo que se tratava da gravação de uma escuta telefónica com vários intervenientes. Blanco identificou depois os três escutados, mas disse que apenas conhecia dois deles, por sinal advogados no escritório de Ana Bruno (indicou os nomes), conhecida por representar Álvaro Sobrinho e Hélder Bataglia, antigos administradores do BES Angola e hoje arguidos em vários processos¬-crime. Nesta altura, tanto os clientes como a própria Ana Bruno já estavam a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) em vários processos relacionados com crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais. 

No documento que mandou para Angola, Blanco não explicou exactamente de onde lhe viera a escuta (à SÁBADO disse que lhe foi enviada de forma anónima para o escritório) nem qual o processo-crime que estava em causa. Mas frisou que tratara de avisar o PGR de Angola porque suspeitara que podia estar em curso uma tentativa de ludibriar o Estado angolano através da inflação de custos decorrentes de um projecto de 120/130 milhões de dólares (entre 98 e 106 milhões de euros ao câmbio actual) previsto para o Soyo, uma cidade situada no Norte de Angola, junto à fronteira com o Congo.  "Não se percebe, da conversa gravada, se há dinheiros públicos envolvidos ou se é uma sofisticada forma de branqueamento de capitais", acrescentou Blanco, salientando que, em todo o caso, lhe parecia "evidente o propósito de alguém em fazer sua e/ou branquear o montante correspondente à diferença entre o valor real do investimento e o anunciado às autoridades angolanas". Depois de recomendar ao PGRA que destruísse a carta ou a guardasse em "lugar absolutamente seguro", Blanco ainda avançou com uma possibilidade do que poderia estar ou não em causa: "Relativamente ao Soyo, o único projecto conhecido aqui em Portugal é o da construção de uma Central de Ciclo Combinado, uma parceria entre a Sonangol e a EDP, que é um investimento de 500 milhões de dólares, pelo que este será seguramente outra coisa, embora atento ao envolvimento da General Electric [multinacional norte-americana] possa ter qualquer relação de complementaridade com aquele." Aliás, logo no início da carta, quando indicara o "assunto", Blanco já havia alinhado nesta hipótese ao escrever que se trataria de o "Projecto da GLS/GE (Parceiro GE – General) no Soyo". 

A fidelidade do advogado

A carta ao "amigo" angolano foi concluída com um "forte abraço" e a referência de que o advogado estava sempre "ao dispor". Agora, quase cinco anos depois e após ser questionado por escrito pela SÁBADO sobre o assunto, nomeadamente sobre a referida escuta – o advogado mencionou de forma clara na carta que também remetia a transcrição em documento anexo juntamente com o CD –, Blanco confirmou a veracidade do documento que foi apreendido durante a Operação Fizz. Mas deu a entender que não via qualquer problema no comportamento que teve sobre o caso, dizendo que se limitara a "sugerir ao PGR de Angola que, querendo, mandasse transcrever a escuta [algo que não é dito na carta original] para mais facilmente poder identificar o assunto e retirar as devidas ilações". E ainda argumentou que o PGR de Angola não "era um terceiro", mas alguém que o tinha contratado. E que havia uma relação de fidelidade, mesmo que estivesse em causa um outro processo para o qual não estava mandatado.

"O patrocínio de um Estado estrangeiro, no antigo país colonizador, tem envolvido a superação de diversos e permanentes testes de lealdade. Se me voltarem a entregar escutas relativas a factos ocorridos em Angola terão o mesmo destino: a Procuradoria-Geral da República de Angola." 

Este é um dos muitos dados polémicos que ainda hoje permanecem no vasto acervo documental que as autoridades portuguesas encontraram nas buscas realizadas a 23 de Fevereiro de 2016. Durante esse dia, polícias e magistrados entraram em bancos, buscaram residências particulares e escritórios de empresas e apresentaram-se em escritórios de advogados. Um destes últimos alvos foi o 5º esqº do nº 84 da movimentada Av. da República, no centro de Lisboa, precisamente a sede da ABPD, Amaral Blanco, Portela Duarte & Associados.

As buscas a Paulo Blanco – acusado de corrupção activa, em co-autoria com o seu cliente, o ex¬-vice¬-presidente de Angola, Manuel Vicente – só ficaram concluídas quando os seis inspectores e os dois especialistas da Unidade de Telecomunicações e Informática da Judiciária juntaram e registaram 80 pastas com documentos em papel e transferiram para um disco rígido da marca Toshiba dezenas de emails que consideram relevantes para a investigação. E foi precisamente nos 12 volumes de apensos do processo (buscas e correio electrónico do advogado) – e também em dezenas de volumes de documentos apreendidos a outros suspeitos e arguidos – que ficou registado um conjunto de informações sobre contactos, negócios e manobras de bastidores do advogado Paulo Blanco e dos respectivos clientes angolanos e testas¬-de¬-ferro.

O procurador intermediário 

Em Portugal, e num período de poucos anos, Paulo Blanco passou de antigo autarca de província (eleito pelas listas do CDS) e advogado praticamente desconhecido, a principal representante do Estado angolano em vários processos por crimes de burla. Ao mesmo tempo, passou também a defender ou a colaborar com alguns dos mais importantes políticos, empresários e banqueiros de Angola denunciados em processos de lavagem de dinheiro, falsificação e fraude fiscal qualificada. Depois de analisada a documentação da Operação Fizz, percebe-se que estes clientes (ou boa parte deles) foram quase todos arranjados pelo procurador-geral de Angola, pois este até intermediou a discussão dos honorários de Blanco com os "amigos", conforme João Maria de Sousa qualificou os suspeitos identificados em Portugal em vários inquéritos-crime. 

Em inúmeros emails apreendidos no processo, datados de Março de 2012 (ainda Blanco defenderia apenas os interesses do Estado de Angola e Manuel Vicente no processo dos apartamentos do Estoril Sol), já se notava essa intermediação do PGR de Angola, que escreveu o seguinte a Blanco: "Recebi mandato verbal dos meus amigos para consigo todos os pendentes deles. Estou a falar do GKope [general Kopelipa] e da esposa, GDino [general Leopoldino Nascimento] e GHigino Nascimento e José Pedro [José Pedro Morais, ex-ministro das Finanças]. Também recomendei o Rabelais [Manuel Rabelais, ex-ministro da Comunicação Social] com quem o meu amigo já manteve contacto. Gostaria que me enviasse um resumo do que há para fazer relativamente a cada um deles, visando o encerramento dos respectivos expedientes processuais." 

Depois, João Maria de Sousa acrescentou que queria que Blanco lhe fizesse chegar as propostas de honorários a cobrar aos visados angolanos. O PGR de Angola alertou até que os preços praticados pelo advogado português tinham de "merecer um tratamento diferenciado de qualquer outro cliente que cai no escritório de pára-quedas". E concluiu: "Como deve entender, eles esperam da minha intervenção, uma considerável redução dos valores a pagar." Esta intermediação que, salvo as devidas distâncias, seria o equivalente à actual PGR portuguesa, Joana Marques Vidal, intermediar com advogados no estrangeiro a defesa de cidadãos portugueses suspeitos de crimes. 

No entanto, com o tempo, Blanco passou a defender praticamente todos os angolanos citados nos emails com o PGR de Angola e não receia confirmar à SÁBADO que o general magistrado foi decisivo nisso. "O dr. João Maria de Sousa, anos depois do início do patrocínio do Estado angolano em Portugal, recomendou os meus serviços a diversas pessoas amigas dele e algumas destas depois a outras, é o chamado ‘boca-a-boca’, a publicidade mais credível. Estou muito grato por isso, não estou esquecido, nem me farei esquecido da ajuda desinteressada que me deu. Todavia, agi sempre de acordo com as regras deontológicas da profissão." 

A ligação de Blanco ao PGR de Angola foi de tal forma intensa que do escritório de Lisboa seguiram várias "notas informativas" sobre a forma como estavam a ser representados os interesses do Estado angolano em Lisboa. Uma destas notas é de Abril de 2011 e diz respeito ao processo Banif, uma alegada burla com a compra de acções do banco que terminou num acordo extrajudicial secreto de pagamentos ao Estado angolano. 

Dando a entender que uma das partes do processo representada pelo advogado Proença de Carvalho – dois herdeiros do tenente-coronel António Figueiredo – teriam conseguido um financiamento do Millennium bcp por influência da Sonangol (um accionista de referência do banco) destinado a pagar parte da indemnização ao Estado angolano, Paulo Blanco defendeu que Angola tinha de se manter vigilante: "Atendendo a que a Sonangol EP reforçou a sua participação na estrutura accionista do BCP e nos respectivos órgãos sociais (...), estão reunidas as condições para um maior controlo e melhor acompanhamento do processo em questão no BCP, por forma a garantir, o prévio ou simultâneo, pagamento ao Estado Angolano no acto da libertação do financiamento e, assim, o sucesso da estratégia oportunamente definida." Ou seja, Blanco sugeriu que a "condução deste assunto" fosse "directamente acompanhada, no interior do BCP, pelos representantes da Sonangol, EP, por forma a evitar quaisquer surpresas desagradáveis e permitir o conhecimento e controlo das necessidades de crédito do grupo de empresas" que iriam pagar ao Estado angolano. 

À SÁBADO, o advogado disse que não é o autor da nota informativa, mas que também a subscreveu. "(...) aquela Nota é dirigida ao Estado Angolano que é o único accionista da Sonangol, EP e não a esta empresa pública, portanto o que ali estávamos a dizer ao nosso constituinte, a República de Angola, que acabara de subscrever um aumento de capital brutal no BCP, é que, naturalmente, na defesa dos seus interesses patrimoniais – do seu capital – poderia ‘... procurar garantir o pagamento prévio ou simultâneo (…) no acto da libertação do financiamento…’" Revista SABADO

Rate this item
(0 votes)