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Sábado, 01 Novembro 2014 22:03

Presidente do Tribunal Constitucional Justifica Posse de Terras

Um requerimento em nome do juiz presidente do Tribunal Constitucional, enquanto representante de uma sociedade anónima, para a aquisição do direito de superfície de milhares de hectares de terra, no Kwanza-Sul, levantou suspeitas de conduta ilegal. A Constituição proíbe os magistrados de exercer outras funções públicas ou privadas. O presidente do TC esclarece o assunto, numa breve e amena conversa com Maka Angola

Eis a narrativa.

No que resta da parede decrépita de uma antiga casa colonial invadida por vegetação daninha, alguém escreveu: “Seja bem-vindo [Cartaz com a fotografia estampada do presidente dos Santos] ao Lonhe”. A comuna faz parte do município da Quibala, na província do Kwanza-Sul.

Esta cortesia, numa localidade onde o tempo há muito parou para os seus habitantes, é bastante apreciada por altas figuras do Estado angolano.

De acordo com documentos obtidos por Maka Angola, o juiz Rui Ferreira e dois dos seus filhos estão em processo avançado de aquisição do direito de superfície de uma extensão total de 24,812 hectares, na comuna do Lonhe. A área total requerida é maior do que 26 cidades do Kilamba juntas e três vezes maior do que a famosa Manhattan, em Nova Iorque. Por sua vez, A província do Kwanza-Sul tem uma extensão territorial de 55,660 quilómetros quadrados.

Em requerimento datado de 4 de Dezembro de 2012, a Fazenda Ulunga S.A., representada por Rui Ferreira, requereu pareceres institucionais para a legalização de 9,767 hectares na Anhara do Calundo, comuna do Lonhe. Os requerimentos foram submetidos ao ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, Afonso Pedro Canga, ao governador provincial do Kwanza-Sul, general Eusébio de Brito Teixeira, entre outras entidades.

No mesmo dia, 4 de Dezembro de 2012, o filho do presidente do Tribunal Constitucional, Nilson Roberto Manita Ferreira, de 27 anos, seguiu os mesmos procedimentos para a legalização de 7299 hectares, na Anhara do Tchilesso. Trata-se de uma propriedade contígua à nordeste das terras requeridas pela Fazenda Ulunga S.A.

Por sua vez, outro filho do magistrado, Rui Miguel Manita Ferreira, de 26 anos, também requereu às mesmas entidades, no mesmo dia, a legalização de 7,646 hectares na área de Caumbundo. Essas terras são contíguas, à sul, às terras solicitadas pelo pai e pelo irmão Nilson.

A 21 de Março de 2013, a Fazenda Ulunga S.A., representada “pelo senhor Rui Constantino da Cruz Ferreira”, escreveu novamente ao ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, Afonso Pedro Canga. Invocou a necessidade “de adquirir o direito de superfície” dos 9767 hectares.

No requerimento, o representante da Fazenda Ulunga solicita ao ministro para que “se digne emitir o seu parecer e mandar passar o referido documento em conformidade”.

Em resposta, o ministro Afonso Pedro Canga respondeu favoravelmente aos três pedidos e deu instruções para que os processos de aquisição sejam céleres, conforme informações fidedignas obtidas por este portal.

Maka Angola visitou recentemente a Fazenda Ulunga. Ao longo da estrada, numa rocha junto à primeira casa dos trabalhadores, está inscrito, em letras enormes, com tinta branca, “Fazenda RF” [Rui Ferreira].

Na nova área de infra-estruturas, situada numa zona de densa cobertura florestal, encontra-se a autocaravana de campismo “do patrão Rui”, como é tratado pelos empregados. Com um alpendre a fazer de varanda, a caravana tem uma vista bucólica, com um pequeno lago à frente, o bebedouro para o gado. Paralela à caravana, há uma cobertura de chapas de zinco que serve de armazém para os equipamentos de trabalho. Debaixo dessa cobertura, perfilam-se três tendas singulares para os trabalhadores que lá se encontram.

O magistrado esclarece

Segundo o advogado Albano Pedro, “o magistrado está proibido de exercer quaisquer outras funções públicas ou privadas, excepto as de docência e investigação científica na área jurídica”. De acordo com o advogado, “o Artigo 179.º, 5.º, da Constituição é claro. O juiz não pode ser representante de uma sociedade comercial em negócios com o Estado, nem solicitar propriedades ao Estado, para fins comerciais e de enriquecimento pessoal”.

Mas, em Angola, muitos estão acima da Constituição.

A sala de reuniões junto ao gabinete do presidente do Tribunal Constitucional, no Palácio de Justiça, está gelada. O responsável do seu gabinete ajusta a temperatura e abre a janela para permitir a entrada de algum calor. Poucos minutos depois, Rui Ferreira, cordial e directo, esclarece ao Maka Angola o imbróglio.

Começa primeiro por referir a posse, há 10 anos, da fazenda da família, no município do Waku-Kungu, com cerca de 2000 hectares. Chama-se “Sete Quintas” e, neste momento, já é pequena para a sua criação de gado e produção de cereais.

“O meu gestor [da Fazenda Sete Quintas] chegou à conclusão de que a área é pequena e sugeriu-me uma associação com outras pessoas para a aquisição de mais terras”, explica.

Sobre os requerimentos em seu nome, enquanto representante da Fazenda Ulunga, o magistrado esclarece que “foi o meu gestor quem preparou o processo da Fazenda [Ulunga]”.Adianta que “já foi feita a instrução para se corrigir a situação, porque, como magistrado, não posso assumir outras funções”.

Rui Ferreira informa que “não há ainda um pedido formal” para a aquisição do direito de superfície.

“Eu não serei requerente de um pedido oficial de terras ao governador ou ao ministro. Confirmo que há, de facto, intenção para a aquisição dessas terras, mas não fui eu quem a endereçou”, continua.

“Quando tomei conhecimento de que havia requerimentos em meu nome, pedi que se corrigisse a situação”, reitera o presidente do Tribunal Constitucional.

Rui Ferreira fala dos seus planos no papel de fazendeiro. “Tenho interesse nessas áreas [terras no Lonhe]. Estou com outras pessoas e quero expandir.” Neste momento, está a proceder à substituição do gado importado do Brasil, devido aos prejuízos que tem registado com a raça Nelore proveniente deste país sul-americano, por outras raças importadas da Namíbia e da África do Sul.

Conta que já adquiriu uma parcela considerável da área requerida ao Sr. Pedro, ex-proprietário da Fazenda Ulunga, e que “a outra está em negociação”.

Rui Ferreira menciona também o seu lado benfeitor. “Fizemos uma grande ponte de madeira [para acesso à sua e a outras fazendas], paga do meu bolso, e a estrada [da comuna da Sanga à sede municipal do Waku-Kungu] foi arranjada com a nossa intervenção”. Segundo o magistrado, o governador Eusébio de Brito Teixeira já planificou para breve a asfaltagem da referida estrada.

Um magistrado, sob anonimato, adianta que “o caso pode ser impugnado, podendo depois o juiz formalizar, de outra maneira [a aquisição do direito de superfície]”.

“O que não entra pela porta, entra pela janela”, diz ironicamente o magistrado.

Por sua vez, o delegado provincial da CASA-CE no Kwanza-Sul, Domingos Francisco Sobral, refere que “a atribuição de mais de 24 000 hectares de terra a um pai e dois filhos é mais do que um exagero”.

“Nós conhecemos bem a área do Lonhe e temos registado a expropriação de terras a milhares de camponeses que sempre viveram nessa área, há várias gerações. Os camponeses já não têm terras próprias para cultivarem para a sua subsistência”, explica o político.

Segundo Domingos Francisco Sobral, “essa situação poderá gerar conflitos dentro de vários anos, por causa da exclusão da maioria. É importante revermos essa situação”.

“Hoje, todo o dirigente, incluindo o presidente da República, tem uma fazenda no Kwanza-Sul. Há alguns que têm quatro ou cinco”, sublinha.

Por via das suas investigações, Maka Angola, já tem contabilizados mais de 300,000 hectares de terras em posse de altos dirigentes angolanos e seus familiares só na província do Kwanza-Sul.

O representante da CASA-CE recorda um famoso poema do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, segundo o qual “hoje a África é como um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu pedaço”. Sobral enfatiza que, hoje, “o Kwanza-Sul é a província onde cada abutre vem retirar o seu pedaço de terra”.

Rafael Marques de Morais

Maka Angola

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