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Terça, 27 Fevereiro 2018 12:39

“Bicefalia” pura e dura

Assim como o algodão não engana, já não é possível esconder o choque de poderes que larva no interior do MPLA. Apesar dos círculos mais obtusos do partido maioritário se recusarem a admitir a existência da “bicefalia”, as evidências espalham-se por todo o lado. O problema está nos seus efeitos nocivos, que ameaçam paralisar o país

Se havia dúvidas em relação à “bicefalia” – designação atribuída por Lopo do Nascimento à coabitação em Angola entre os poderes representados pelo líder do MPLA, de um lado, e pelo novo Chefe de Estado saído das eleições de 23 de Agosto de 2017, de outro –, vários eventos estão a encarregar-se de provar que o país está realmente diante de um choque de poderes, puro e duro, entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço. Atente-se para o que se passou nos últimos dias e veja-se como a “bicefalia”, à solta e sem travões, impregnou toda a agenda política do país, marcando os assuntos mais importantes.

Sexta-feira, 16, os novos membros do Conselho da República foram chamados a tomar posse no Palácio da Cidade Alta. Contudo, José Eduardo dos Santos, que por prerrogativa constitucional é membro de pleno direito desse órgão, não compareceu ao acto, deixando no ar toda a sorte de interrogações sobre a sua ausência.

Na segunda-feira, 19, o Presidente da República promoveu em Benguela o Conselho de Governação Local, que reuniu ministros e todos os governadores provinciais. Nesse encontro, João Lourenço transmitiu importantes linhas orientadoras relativas à institucionalização das Autarquias Locais no país, anunciando ao mesmo tempo que as eleições autárquicas deverão ter lugar antes de 2022.

As palavras de João Lourenço ainda ecoavam e logo no dia seguinte, terça-feira, 20, José Eduardo dos Santos dirigiu uma reunião ordinária do secretariado do Bureau Político do MPLA. Se aparentemente essa reunião não teve qualquer nexo de causalidade com o Conselho de Governação Local promovido pelo Titular do Poder Executivo no dia anterior em Benguela, o que veio a seguir mostrou o contrário. Na quarta-feira, 21, o secretariado do BP realiza, na sede nacional do partido, a primeira reunião com os principais dirigentes dos comités provinciais do partido. Ou seja, tratou-se de uma reunião com a participação de todos os governadores, os quais, regra geral, acumulam esse cargo com os de primeiro secretário provincial do MPLA. Logo, as mesmas personagens que haviam tomado parte na reunião com João Lourenço em Benguela.

De acordo com o que foi tornado público, a reunião, convocada por José Eduardo dos Santos, além de ter abordado matérias diversas relativas à vida interna do partido, visou traçar perspectivas de trabalho, tendo em vista a consolidação do papel dirigente do MPLA como o maior e mais dinâmico protagonista da acção política, organizativa e social do país no período 2018/2022. Oitenta e seis dirigentes participaram nela, entre os quais o próprio João Lourenço, na qualidade de vice-presidente do partido. Esta sexta-feira, entretanto, José Eduardo dos Santos volta a reunir o órgão de cúpula do MPLA.

O que salta à vista é que em nenhuma outra época da história do MPLA houve tamanha azáfama por parte dos seus órgãos de direcção, envolvidos em reuniões atrás de reuniões. Há muito que isso não acontecia. Mas fica claro que se trata de uma dinâmica deliberadamente imprimida pelo seu líder, José Eduardo dos Santos, com o objectivo de ofuscar a agenda do “outro”, neste caso do Presidente da República João Lourenço. José Eduardo dos Santos esforça-se para mostrar à sociedade que o MPLA – que ele dirige agora em “full time” – é a locomotiva da governação do país e que as acções e iniciativas do Chefe de Estado seriam, nessa ordem de ideias, uma emanação da orientação partidária, tendo um pendor subalterno se comparadas com as conduzidas pelo líder do MPLA.

O risco é o de tudo isto vir a gerar não um salutar exercício de emulação entre o partido e os órgãos estatais, mas um choque entre as acções de um e de outros, que levado ao extremo poderá acarretar efeitos danosos sobre as actividades e programas do Governo. Na medida em que algumas das actividades e programas preconizados pela equipa de João Lourenço não sirvam eventualmente os interesses da ala eduardista, é bem provável que venham a ser dificultados e obstaculizados por ela.

Não está claro, por exemplo, que os sectores do partido mais ligados a José Eduardo dos Santos darão um claro e inequívoco apoio aos programas de combate à corrupção que estão a ser gizados por João Lourenço. Em termos de discurso já se nota uma falta de sintonia entre as duas alas, o que também pode ser sintoma de diferenças significativas de estratégias, metas e objectivos nessa matéria.

Quarta-feira última, 21, a Lei do Repatriamento de Capitais, que constitui uma peça vital do programa de combate à corrupção e importante igualmente na perspectiva do relançamento económico do país, passou apertadamente na generalidade na Assembleia Nacional. Mas já se vê que, até à sua aprovação definitiva, esse diploma terá ainda vários desafios e escolhos para ultrapassar.

Vários cães de fila têm sido lançados ao terreno rosnando receitas que visam demover a aposta do Governo de João Lourenço nessa fórmula. Não terá sido casual ou fruto de iniciativa individual que Norberto Garcia, cooptado para a direcção do MPLA do qual passou a ser porta-voz, tenha, pouco antes da matéria subir ao parlamento, discordado terminantemente do repatriamento de capitais. Voz alugada de José Eduardo dos Santos, é evidente que sem um “sopro” deste, Norberto Garcia não se teria atrevido a sugerir, como o fez em entrevista a Rádio Ecclesia, que se dispense a lei, optando-se por uma espécie de pacto de cavalheiros com os detentores de dinheiros no estrangeiro.

O mesmo se pode dizer relativamente ao primário e rude Bento Kangamba, que saiu do casulo em que andava metido ultimamente exactamente para lançar farpas contra a proposta de lei sobre o repatriamento de capitais. Os pontos de vista defendidos por Kangamba e Norberto Garcia são avaliados como sendo os mesmos de José Eduardo dos Santos nessa matéria, que os usa como “para-choques”.

É evidente que, em nome da “bicefalia”, o líder do MPLA continuará a fazer tudo para, a partir do seu posto, reduzir o protagonismo do novo Chefe de Estado, não se dispondo nunca a surgir em cerimónia pública em que se veja ofuscado por ele. Mas por maiores que sejam os seus intentos de pôr sempre o “outro” em plano secundário, não se está a ver como José Eduardo dos Santos se irá desenvencilhar para não ocupar a sua cadeira na primeira reunião do Conselho da República, que João Lourenço aprazou para Março próximo, e onde JES seria uma peça menor à do Presidente da República.

O facto de ter falhado à cerimónia da tomada de posse não o afasta do cargo a que, constitucionalmente, tem direito. Já o mesmo não se poderá dizer se, deliberadamente, evitar apresentar-se às sessões do órgão de consulta do Presidente da República. Ausências reiteradas implicariam a sua “desclassificação” do órgão – compulsivamente ou por renúncia. E caso decida não se apresentar ao Conselho da República, José Eduardo dos Santos estará a assumir, claramente e sem mais rodeios, a “bicefalia” como uma realidade indesmentível do panorama político nacional.

A questão última agora é: como o homem se vai descoser deste imbróglio em que o próprio se enfiou? CA

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