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Quinta, 07 Junho 2018 11:51

Bandido bom já morreu?

Bairro Benfica, imediações do Mercado de Artesanato. Vê-se sangue. Um jovem ensanguentado está a contorcer-se de um lado para outro. Parece neutralizado. Perto dele um homem com colete do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e metralhadora em punho fala ao telefone.

Por Luísa Rogério

O jovem que agoniza com dores tenta sentar-se no chão. Volta a deitar-se, ainda a contorcer-se. O vídeo amador, supostamente filmado por uma mulher mostra bem os detalhes. “Esse moço vai morrer aqui agora. Pai da glória tenha misericórdia Senhor…” clama a voz feminina. “Não mata meu Deus! Vão matar o moço, Pai da glória”. Entra então em cena um terceiro homem. Não veste colete nem exibe qualquer elemento de identificação. Ouvem-se depois cinco disparos sequenciais. “Ah, misericórdia, Pai da glória, mataram o moço aqui à frente da população!”

O vídeo da morte à queima-roupa incendiou as redes sociais. No mesmo dia o Ministério do Interior divulgou uma nota de repúdio contra o acto, dando igualmente conta de desencadear mecanismos com vista a responsabilização criminal e disciplinar do autor dos disparos mortais vistos no vídeo compartilhado milhares de vezes. Outra postura não seria de esperar. O dito meliante já estava neutralizado. Só que falta muito para o ponto final! Os lamentos da autora do vídeo viral não induziram à unanimidade. A morte do suposto marginal, na sequência de acontecimentos que o vídeo não mostra, gerou enorme onda de contestação, mas também imensos aplausos. As opiniões estão profundamente divididas.

A publicação nas redes sociais de um apelo com vista a impedir a responsabilização dos agentes envolvidos na ocorrência registou milhares de partilhas. O acto está a ser glorificado por pessoas que rebuscam argumentos para justificar o abate frio de um ser humano, já imobilizado. O aumento do número de mortes violentas, violações, roubos e tantas outras maléficas acções perpetradas por indivíduos que nos confinam em masmorras de pânico, serve de mote aos apologistas de execuções sumárias. Criaram-se páginas de solidariedade para com os agentes implicados na morte do “abominado bandido”. Pessoas de bem afirmam, serenamente, que o cancro deve ser extirpado sem apelo nem agravo. Por causa das inomináveis práticas delituosas deveríamos ser todos, incondicionalmente, agentes ao estilo dos celebrizados no Benfica.

Algumas posições desencontradas provocaram inimizades. Os “advogados” da matança consideram os outros cúmplices dos bandidos, sendo por isso merecedores do rótulo. Para eles, as vozes contrárias à execução compõem apenas a metáteses menos degradada, mas não deixam de ser ramificações do tormentoso cancro. Exorcizam convicções com frieza que chega a atemorizar. Estão certos em relação aos altos índices de criminalidade. Qualquer pessoa minimamente sensata sabe que há razões para nos sentirmos amedrontados. A audácia dos delinquentes transpõe as muralhas e gradeamentos em que tentamos enclausurar o medo.  

Chamem-se pois, sociólogos, psicólogos e demais especialistas ao debate para comentar a violência geradora da barbárie típica da terra onde acusação é sempre sinónimo de presumível culpado. No caso do vídeo, ninguém além dos protagonistas está em condições de avaliar o grau de tensão e outros factores que motivaram a opção pelo fatídico desfecho. Fala-se de condições de trabalho inadequadas e de profissionais que cumprem perigosas missões desguarnecidos do elementar colete à prova de bala. Ainda assim, os agentes devem ter um nível de preparação que induza ao comportamento correcto. Por isso pertencem ao Serviço de Investigação Criminal, regido por uma pauta ético-deontológica. Se preferirmos, regras de conduta.

O contexto cria espaço para os cultores da tese “bandido bom é bandido morto”. Mesmo sob o risco de ser encaixada na prateleira reservada aos defensores de bandidos, rejeito teorias que legitimam a morte impiedosa de seres humanos, a menos que caibam no conceito de legítima defesa. Sinto dificuldades em aplaudir a banalização da morte. Apesar de discordar em termos absolutos da execução sumária como forma de resolução de problemas, sou capaz de compreender que traumas profundos desencadeiem reacções imprevisíveis em cidadãos que, em condições normais disseminam salmos e correntes religiosas e/ou bíblicas. Apregoar o quinto mandamento e simultaneamente aplaudir fuzilamentos implacáveis atesta bem o grau de perturbação da nossa sociedade. JA

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