Terça, 19 de Março de 2024
Follow Us

Sábado, 24 Março 2018 10:36

João Lourenço deixa cair promessa eleitoral sobre as autarquias locais

Durante a campanha eleitoral, o então candidato João Lourenço garantiu que a implementação das autarquias poderá solucionar “os problemas das assimetrias regionais, bem como da falta de energia, habitação, água e emprego”. 

Por Mihaela Webba

No decorrer do acto político de massas realizado pelo MPLA na Camama, Luanda, em Agosto de 2017, João Lourenço prometeu que, com as autarquias locais, os angolanos todos iriam beneficiar política, económica e socialmente do processo de descentralização e que ninguém seria discriminado em função do seu local de residência: “Vamos trabalhar no sentido de fazer com que todos angolanos beneficiem do que o governo tem para oferecer, sem discriminar as pessoas em função da província ou cidade em que residem” realçou.

De igual modo, quando esteve em Benguela, João Lourenço estabeleceu uma relação directa entre as autarquias locais, o impacto dos investimentos no interior e as assimetrias regionais. Assegurou que “o investidor deve sentir que tem benefícios ao investir nas zonas menos desenvolvidas, garantindo a população vida estável, através do emprego e outros benéficos”.

Afirmou ainda que “o cidadão angolano tem o direito de viver em qualquer espaço do território nacional, e de garantia de ter as mesmas facilidades, oportunidades e serviços que encontraria noutros lugares, como nas grandes cidades, como Luanda”.

Este direito de viver em qualquer parte do território nacional e de ter as mesmas oportunidades e facilidades de serviços públicos contrasta com a discriminação territorial que o Executivo pretende adoptar na implementação das autarquias locais.

De facto, nada na Constituição autoriza a que o poder local, na sua expressão mais significativa (as autarquias municipais), não seja implementado em todo o território nacional ao mesmo tempo. Implementar as autarquias locais em alguns municípios e noutros não, traduziria ofensa ao princípio democrático, ao princípio da igualdade na esfera da participação política dos cidadãos e não menos ao princípio da autonomia local; por outro lado, é dificilmente sustentável a racionalidade quer da hipótese de adiar, para uma segunda fase, a criação de autarquias locais nas áreas mais desfavorecidas do território nacional (o que redundaria numa dupla penalização dessas comunidades, além da ofensa àqueles princípios), quer a hipótese de a adiar nas áreas mais desenvolvidas (o que redundaria no absurdo da inibição do desenvolvimento, justamente onde o mesmo se mostra mais exequível).

Angola é um um Estado unitário que, na sua organização política ao nível local, observa o princípio da descentralização administrativa e da autonomia local, por permitir que órgãos autónomos do poder local prestem os serviços públicos locais.

Isto deve ser feito sem discriminação territorial. Lá onde o Estado exerce a sua soberania, os serviços públicos locais devem ser prestados por órgãos autónomos do poder local. Para tal, não pode existir nenhum palmo do território nacional que não seja parte integrante de uma autarquia.

Por isso mesmo, a Constituição define assim as autarquias locais:
“As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes nas diversas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança, mediante órgãos próprios representativos das respectivas populações”. Isto significa que lá onde há território nacional, com residentes, deve haver autarquia. (Artigos 217.º e 218.º da CRA). De facto, não há espaço territorial da República de Angola que não integre um município nem residente que não resida num município.

Conjugando a norma no Artigo 8.º (sobre o Estado unitário) com a norma no artigo 217.º da CRA, entende-se bem que, por via delas, o legislador constituinte orienta o legislador ordinário a observar o facto de que, na estruturação da organização democrática do Estado unitário ao nível local, deve haver uma correspondência directa, uma ligação natural entre o território do Estado unitário e o conjunto de residentes nele, todos os residentes, sem discriminação. Isto significa que não pode existir nenhuma parcela do território do Estado unitário, e dos residentes nele, que não pertençam a uma autarquia.

A garantia existencial das autarquias locais em todo o território nacional é assegurada directamente pelos princípios constitucionais, designadamente o principio da autonomia local, o principio do estado de direito, o principio da igualdade e o principio da universalidade do sufrágio. A lei ordinária não pode limitar nem condicionar ou em campanha restringir o exercício desses direitos por nenhum cidadão, ou munícipe, com base no seu local de residência, tal como sugeriu o (actual) Presidente da República durante a campanha eleitoral.

Claro que o país é diverso. Claro que os municípios têm níveis diferentes de produção, literacia, cultura e consumo. Claro que os municípios têm densidades populacionais e rendimentos per capita diversos, o que torna as autarquias municipais naturalmente desiguais. Mas tal desigualdade natural existe desde a constituição da República e desde a proclamação do Estado, e, por isso, não pode, e não deve servir de impedimento ao estabelecimento das autarquias em todo o território nacional ao mesmo tempo, assim como não impediu a proclamação da independência, sobre o território de todos os municípios ao mesmo tempo, no dia 11 de Novembro de 1975 e não tem impedido o exercício da soberania pelo Estado unitário desde 1975, nem impedirá a pretendida desconcentração administrativa, em 2018.

Qualquer município, por mais pequeno que seja, ou por mais abandonado que esteja pelo poder central, é parte inalienável do território angolano e seus residentes têm o direito inalienável de eleger os seus representantes para a prestação dos serviços públicos locais de forma autónoma. A lei não pode discriminá-los. Se houver lá ouro, urânio, fosfatos, diamante, ou petróleo, o governo central certamente que vai lá busca-los. Se houver votos para o poder central sentir-se legitimado, certamente que o governo central vai lá buscá-los. Então porque é que os seus residentes não podem votar para terem a sua própria Câmara Municipal? Mesmo que não produzam nada, mesmo que não exista lá agora a AGT, o dinheiro da madeira, do peixe ou do petróleo produzidos noutros municípios também lhes pertence. Os dinheiros roubados pelos governantes também lhes pertence. Porque eles constituem o substrato humano do mesmo Estado unitário e são titulares dos mesmos direitos que usufruem os cidadãos residentes noutros locais.

A solução para a desigualdade territorial não reside na distorção do princípio instrumental do gradualismo, mas sim no regime das finanças locais. Este é o caminho a seguir: a estrita observância do artigo 217.º da CRA, que estabelece de forma bem clara e inequívoca como o legislador ordinário deve equacionar o problema: “A lei define o património das autarquias locais e estabelece o regime de finanças locais tendo em vista a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias, a necessária correcção de desigualdades entre autarquias e a consagração da arrecadação de receitas e dos limites de realização de despesas” (artigo 217.º n.º 3 da CRA).

Portanto, os argumentos sobre “o factor novidade”, ou sobre a necessidade de um “regime experimental” ou ainda sobre uma alegada “exiguidade dos recursos”, aventados agora pelo Presidente da República, contrariam as suas promessas eleitorais, ignoram a realidade histórica de Angola e não têm respaldo constitucional.

Rate this item
(0 votes)