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Segunda, 26 Fevereiro 2018 12:21

Estado de Direito "versus" ordens superiores

Mais de duas décadas depois de algum costume, político, jurídico, e porque não de moldar a vida ao paradigma do que determina a lei, persistem práticas que resistem e inviabilizam a caminhada para a efectivação dos pressupostos do verdadeiro Estado de Direito.

Por Faustino Henrique

É verdade que muito se alcançou, particularmente do ponto de vista legislativo, ao ponto de aparentemente  e a começar pela Constituição em vigor há oito anos, pouco ou nada de estruturante faltar em termos legais para que Angola seja uma democracia e Estado de Direito de facto e de Jure. 

O artigo 6.º da Constituição, sobre a supremacia da Constituição e legalidade, no seu número dois, dispõe que “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”, passagem que não carece de qualquer exegese ou hermenêutica para a sua compreensão e alcance.

Está claro pelo exposto que, além do “Estado subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade”, todos os seus agentes, individuais ou colectivos, do topo a base, se quisermos desde o Presidente da República ao empregado de limpeza estão obrigados da observância de tal preceito.

É verdade que há uma longa marcha a fazer para reduzirmos o fosso, ainda existente, entre três elos nem sempre convergentes, nomeadamente a lei, a prática que deve acompanhar e o costume.

Mas não há dúvidas de que determinadas práticas deviam já deixar de fazer parte do nosso quotidiano, expectativa essa que cresceu com a tomada de posse do Presidente João Lourenço, a 26 de Setembro de 2017, inaugurando uma nova era no que a subordinação do Estado e dos seus agentes ao primado da Constituição e da lei dizem respeito. Algumas inquietações persistem, nomeadamente as “ordens superiores” e outras práticas que, adiante, exemplificar-se aqui neste espaço, expedientes que retiram lisura, democraticidade, cultura legal e obediência à lei em detrimento do politicamente correcto.

É verdade que esta dicotomia, entre os aspectos de natureza política e os de ordem legal, divide milhares de pessoas, entre especialistas e leigos, sendo que a opinião da maioria, e para não desvirtuar em demasiado o respeito pela lei, pende obviamente por aquela última.

Hoje, não faz sentido que continuemos a ouvir da parte de entidades públicas, sobretudo estas, cujo o director ou chefe máximo resiste a dar informações, básicas e necessárias,  alegando “ordens superiores”. Embora esteja a frente de instituições cujo estatuto orgânico lhe confere poder discricionário para falar aberta e normalmente sobre a sua instituição, o argumento generalizado para não falar passa sempre pela falta de autorização superior. É legal e justa esta atitude, assumida de forma recorrente por detentores de cargos públicos e que fere gravemente os pressupostos em que assentam os pilares do Estado de Direito ?

Será que precisamos de uma lei especial para erradicar a instituição “ordens superiores” e, nalguns casos, levar as entidades detentoras de cargos públicos, nos termos da lei, a falar livremente e sempre que forem interpelados. Não faz sentido que, por exemplo, o director de uma escola do primeiro ciclo do ensino primário, de quatro ou cinco salas, o comandante de uma  esquadra, o administrador de um mercado, não fale com alegações segundo as quais não está autorizado a falar.

Não podemos dar a impressão de que somos democratas, que temos um Estado, instituições e pessoas cujos actos  se subordinam rigorosamente à Constituição e à lei, ao mesmo tempo que nos apegamos a práticas que lhe contrariam.

Mobutu, o antigo Presidente do ex-Zaire, quando interpelado se a democracia ocidental não era exequível em África respondia muito laconicamente, na sua famosa voz rouca, “pas à lettre”. Esse paradigma, segundo o qual a democracia ocidental pode ser exequível, mas não exactamente em função da letra, pelo menos na prática, parece corresponder exactamente ao que se passa em África. E ainda em Angola, infelizmente.

Mas nada justifica que se perpetuem práticas que lesam gravemente a democracia e o Estado de Direito, tais como “ordens superiores”, expediente que ganhou estatuto de verdadeira instituição  e que deve ser erradicado já em nome do Rule of Law.

Talvez, nos casos em que as entidades detentoras de cargos devam falar, à imprensa, venhamos precisar de uma lei específica, por exemplo, como a americana Freedom of Information Act, que obriga a divulgação total ou parcial de informação por parte dos agentes governamentais. E, apenas para lembrar, aquando do escândalo do E-mail usado pela Secretária de Estado e posteriormente candidata às eleições presidenciais americanas, Hillary Clinton, as agências noticiais recorreram aos tribunais por causa da recusa com alegações de que o material era tão vaso que levaria muito  tempo até ser colocado no âmbito do domínio público, nos termos da lei. Um mês tinha sido o prazo declarado pelos tribunais para que a equipa de Clinton disponibilizasse as informações aos órgãos de informação, nos termos da lei, determinação que tinha sido seguida sem mais argumentos.

Entre o Estado de Direito e as “ordens superiores”, sobretudo quando estas últimas violam gravemente o primado da Constituição e da Lei, temos de escolher. JA

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