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Quinta, 14 Setembro 2017 10:21

Não houve real observação eleitoral nas eleições angolanas

1. Não houve. Este artigo poderia resumir-se a duas palavras. Não houve real observação eleitoral nestas eleições angolanas.

Por José Ribeiro e Castro

Observação eleitoral não é turismo político. Turismo político é actividade legítima: de solidariedade, amizade, curiosidade. Mas não se confunde com observação eleitoral. Pratica-se entre correligionários ou outros amigos e curiosos. Observação eleitoral é uma actividade de observação técnica, séria, objectiva, completa e independente, que olha, analisa e verifica, à luz de padrões internacionais, a totalidade dos actos e operações que integram um processo eleitoral: leis, regulamentos e directivas; sistema eleitoral; orgânica e administração; recenseamento e cadernos eleitorais; processo de candidatura; organização de mesas e assembleias de voto; campanha eleitoral; igualdade de tratamento pela comunicação social; sondagens; acreditação de delegados das listas para todas as mesas e centros de contagem; o dia da eleição; contagem dos votos e sua tabulação; sondagens à boca das urnas ou outros processos de “quick count”; a divulgação de resultados parciais provisórios; tramitação e decisão de reclamações e recursos; independência e seriedade das instâncias de decisão (comissões eleitorais e tribunais); os resultados finais. Não é ver bocados, é observar de fio a pavio.

A todos se chama por vezes observadores, porque todos observam. Mas só merecem o tratamento de observadores eleitorais, em sentido próprio, aqueles que integram missões de observação devidamente constituídas, com aptidões treinadas e código de conduta rigoroso.

Fiz várias missões de observação eleitoral e chefiei três missões da União Europeia. São missões muito profissionais, muito criteriosas, muito exigentes. Pelo que se passa em Angola, uma missão europeia e outras de perfil semelhante fizeram muita falta. É evidente que não podem resolver os problemas, o que cabe às autoridades nacionais, no quadro das suas leis e instituições. Mas, pela sua independência, rigor e credibilidade, podem prevenir problemas e, por vezes, ajudar a remediar. Sobretudo, ajudam terceiros, a cidadania e a comunidade internacional a conhecer, avaliar e entender a verdade dos factos.

Estas missões têm alguns quadros de referência semelhantes, sendo os mais completos que conheço os da União Europeia e da OSCE. Mas também as linhas de orientação das missões da União Africana exigem dos governos respectivos “garantir a transparência e a integridade de todo o processo eleitoral, facilitando a presença de representantes de partidos políticos e candidatos individuais nos locais de voto e de contagem e credenciando observadores/monitores nacionais e outros”; e estipula que as missões da UA devem ter “acesso sem impedimento a todos os locais de voto e centros de contagem”.

Foi aqui que os problemas surgiram e todas as reservas, dúvidas e contestações se instalaram. Aqui, a observação falhou rotundamente. E, infelizmente, nesta altura, só é possível dizer que apenas é claro que quase nada é claro.

Sabemos que, na base, diversos partidos se queixam da obstrução a credenciarem delegados para muitos locais, assim como todos vimos, no topo, o protesto de mandatários na CNE por não presenciarem operações que suportassem os resultados provisórios dados a público. E temos seguido, pelas notícias, as atribulações de reclamações e recursos.

2. Dois dias depois das eleições, vi, na RTP3, um comentador, antigo dirigente do CDS, prevalecer-se da conversa que – disse – havia tido com um observador, antigo ministro, acabado de chegar de Luanda, que lhe dera conta de tudo ter corrido de forma tão magnífica que quase se poderia dizer que as eleições angolanas tinham sido melhores do que as nossas. Este entusiasmo trouxe-me à memória uma célebre frase de Salazar, em 1945: “Considero as próximas eleições tão livres como na livre Inglaterra”.

Este tipo de afirmações de observadores avulsos, ou assim agindo, são prematuras e imprudentes, porque focadas num momento isolado: o dia da eleição. Não viram tudo o que se passou antes, nem viram o que se segue e é absolutamente decisivo. No Manual europeu, por exemplo, adverte-se: “Observar a tabulação (isto é, o apuramento e escrutínio) é particularmente importante, uma vez que erros ou irregularidades podem ter um efeito muito maior nos resultados das eleições do que os problemas nas mesas e assembleias de voto individuais”. É óbvio, intuitivo. A “fase da calculadora”, isto é, a totalização dos resultados de patamar em patamar até aos totais nacionais, é determinante: somam-se votos nas mesas e, a partir daí, é um processo consecutivo de somas e somas de somas. Ora, não dispomos de qualquer avaliação objectiva independente desta fase crucial, o que agrava a desigualdade dos partidos e candidatos fora do poder. Temos a proclamação do poder e as queixas de todos os demais partidos. É pena.

Esta falta de observação independente do escrutínio, do apuramento e das reclamações e recursos é uma triste circunstância que o povo angolano não merecia, pela forma extraordinária, em qualidade e em quantidade, como acorreu às urnas no dia 23 de Agosto, mostrando como está plenamente maduro para a democracia.

Nesta altura, quando se aguardam as últimas decisões do Tribunal Constitucional e passa uma semana sobre os resultados definitivos, continuam sem estar disponíveis ao público, no portal da CNE, os resultados, município a município. Em Portugal, desde 1975, dispomos deles por freguesia, quer ao longo de todo o apuramento provisório, quer após o apuramento definitivo. É assim em todas as eleições democráticas que tenho seguido por todo o mundo. Por duas razões simples: uma, a de que têm de ser públicos os dados apurados nos diferentes patamares de apuramento; outra, a de qualquer interessado só poder controlar as somas se conhecer as parcelas. Isto não é política, é aritmética elementar. Na eleição angolana, é estranho: os resultados provisórios foram apresentados pela CNE com dados a nível nacional, provincial e municipal; os definitivos omitem os resultados por município, a primeira unidade de totalização. Para os partidos reclamantes e organizações independentes, a omissão torna mais difícil a avaliação da consistência dos resultados. Quanto mais distante da base original são os resultados dados a público, mais crítica é a tarefa de os acreditar.

Em observação eleitoral, uma técnica comum é a chamada “Parallel Vote Tabulation” (tabulação paralela), um apuramento feito com base numa amostra aleatória representativa de assembleias de voto, para, de modo reservado, aferir da consistência dos dados publicados. A falta dos definitivos municipais – de Mavinga, Golungo Alto, Catumbela, Luau, Cacuaco, Caála, Humpata, etc. – torna esse exercício impossível ou temerário. E o facto não ajuda à credibilidade. A soma constrói-se a partir das parcelas e não as parcelas a partir da soma. Sem conhecer e avaliar as parcelas, é impossível verificar a soma.

3. Durante vários dias segui o noticiário da TPA. No dia 24 de Agosto, a seguir à proclamação pelo MPLA, a Comissão Nacional Eleitoral divulgou os primeiros resultados provisórios – com o tal pormenor de as percentagens dos partidos somarem 100,37%. Na altura, estavam contados 63% dos votos. No dia seguinte, foram actualizados, apresentando-se já a repartição completa dos 220 deputados – estavam contados 97,8% dos votos. Durante vários dias, até ao fim do mês de Agosto, a TPA foi dando conta de encerramentos nas províncias: hoje três, amanhã quatro, depois outras quatro, e assim sucessivamente, incluindo comentários de delegados das listas. É difícil entender como estavam contados quase 2/3 dos votos, no dia 24, e 98%, no dia 25, enquanto continuavam os apuramentos provinciais, como se uma coisa não tivesse a ver com a outra. Isto não ajuda à credibilidade. A própria sequência quotidiana ao longo de uma semana também não é comum: a eleição é no mesmo dia e as contagens e apuramentos decorrem todos ao mesmo tempo, terminando habitualmente na mesma altura, com diferença de algumas horas, em razão de peculiaridades locais. Isto deveria ter sido objecto de observação. Não há notícia de o ter sido.

No dia 4 de Setembro, a seguir à comunicação do Presidente da CNE, negando acusações da oposição e sustentando a bondade do processo, a jornalista da TPA disse que delegados de todos os partidos “reafirmam” (sic) o seu acordo com o processo. Foquei a minha atenção. Ora, a TPA fez repetir os mesmos sons e imagens de delegados que já tinha apresentado na série da semana anterior, nos encerramentos provinciais, com declarações de que várias haviam, entretanto, sido desmentidas ou desautorizadas – é público que os partidos da oposição só reconheciam os apuramentos fechados em três províncias. Não era uma “reafirmação”, mas a repetição de uma gravação. Isto não ajuda à credibilidade.

Anteontem, ouvi no noticiário principal da TPA que seria crime comissários provinciais terem facultado aos partidos recorrentes actas e documentos do processo eleitoral. Não conheço os detalhes. Mas crime como? Como podem os recorrentes fundar os seus recursos sem documentos suficientes? Isto também merecia ser observado. Não há notícia de o ter sido.

4. Segundo dados publicados por meios próximos da oposição, o MPLA ganhou as eleições e João Lourenço – cabeça-de-lista pelo círculo nacional do partido mais votado – é o Presidente da República, com Bornito de Sousa a Vice-Presidente. O MPLA não teria a maioria dos votos (46%), mas poderia alcançar a maioria absoluta de deputados, dependendo da repartição provincial e dos efeitos concretos do sistema proporcional. Estes dados assentam em suportes incompletos e não podem ser dados como “os resultados”. A verdade é que não sabemos. E é pena. Não havia necessidade.

Pondo de parte o petróleo e os diamantes, em que tem assentado a economia e o sistema, Angola tem enormes capitais. Tem um território vasto e muito rico, tem espaço e largos horizontes, tem a alegria e o sentido de humor das suas gentes, tem a energia vigorosa de uma juventude em explosão e tem o privilégio de não ter inimigos. Não conheço ninguém que queira mal a Angola. Toda a gente quer que o presente e o futuro lhe corram bem e que Angola e os angolanos desfrutem plenamente de oportunidades francas e recursos abundantes. O mundo deseja que Angola cumpra o seu destino como alavanca de estabilização e de progresso em África e no Atlântico Sul.

Estas eleições estão protegidas por esse ambiente favorável. Toda a gente queria que corressem bem e que haja uma transição não problemática. Esse clima benévolo deveria ser aproveitado por todos, não apenas por alguns. Sobretudo deveria ser usado a favor da verdade insofismável e da democracia.

Dos visitantes externos, é muito mal que falem apenas com o poder ou com o MPLA, em vez de, como defendo, falarem todos com todos, sem excepção. Se os deputados portugueses, com especiais responsabilidades na CPLP, não reuniram com dirigentes da UNITA, da CASA-CE, do PRS, da FNLA e da APN, a visão terá ficado zarolha e a limitada observação feita não prestaria. O caso seria pior no tocante a deputados do PSD e do CDS, pois a UNITA é membro da IDC (Internacional Democrática do Centro), família onde todos se inserem, directamente ou através do PPE. É importante saber-se o que se passou. O CDS deve muito aos parceiros internacionais e à sua solidariedade moral impecável, em momentos muito difíceis de 1975. Se parceiros do CDS tivessem dito que o que acontecia em Portugal era melhor do que na Alemanha, no Reino Unido, em França ou na Itália, o CDS possivelmente teria acabado. E, apesar do PREC, valha a verdade, as eleições constituintes foram, técnica e formalmente, impecáveis, descontado o condicionamento do ambiente revolucionário. Não se pode virar costas aos nossos parceiros e é dever falar sempre com todos. A diplomacia de partido único é uma prática deplorável no plano político e moral, que nunca conduz a bons resultados e prejudica muito a democracia.

5. Consegui, no Parlamento Europeu, a atribuição do Prémio Sakharov 2001 a D. Zacarias Kamwenho, então presidente da CEAST (Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé e Príncipe). É, até hoje, a figura angolana com a mais alta distinção internacional pelos valores da paz e dos direitos humanos.

Nessa altura, conheci outra grande figura: o Reverendo Daniel Ntoni Nzinga, vice-presidente do COIEPA, Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola, de que D. Zacarias era o presidente. Voltámos a ver-nos umas duas vezes em Luanda, depois disso. Há cinco dias, li uma entrevista do Pastor Ntoni Nzinga sobre estas eleições. São palavras prudentes, reservadas, sábias, que Angola é uma terra muito dorida. Tudo visto, sintetiza o essencial: «A verdade eleitoral é crucial para Angola.» Ninguém poderia dizer melhor.

Muitos vão ficar com a ideia, que já se comenta, de as eleições angolanas de 2008, 2012 e 2017 terem resultados administrados com desconto: menos 10 pontos de cada vez para o MPLA (81,8%, 71,8%, 61,1%); mais 8 pontos de cada vez para a UNITA (10,4%, 18,7%, 26,7%); o resto repartido por outros. Neste contexto, merece admiração e apreço a coragem e resiliência dos partidos fora do poder para, aceitando as difíceis circunstâncias, sem quebra e sem violência, e enfrentando a adversidade, assumirem as responsabilidades que vão conquistando, tomarem os seus lugares, nunca calarem a sua voz. Exemplo é a chamada cedo colocada nas redes sociais, após as eleições, pelo deputado Lukamba Gato. Não é fragilidade. É verticalidade e coluna direita. As vozes livres não se calam; exprimem-se em todos os lugares.

Um dia, talvez a oposição angolana e outras vozes da sociedade civil mereçam o Prémio Nobel da Paz ou outra distinção internacional. O progresso social e político em Angola, difícil, problemático tem resultado do seu comportamento inconformado, tenaz e exemplar.

A TPA tem passado, praticamente todos os dias, insistentes apelos de autoridades tradicionais e religiosas de todas as partes de Angola à paz e à concórdia. São bons sentimentos. Guardemos a promessa do sermão: “Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra”.

Post scriptum: Já depois de enviado este artigo para publicação, foi conhecida a última decisão do Tribunal Constitucional sobre os recursos apresentados pelos partidos com assento parlamentar, excepto o MPLA. O Tribunal rejeitou-os a todos: do PRS, da FNLA, da CASA-CE e da UNITA. Não surpreende. Não se conhecem pormenores e vê-se, uma vez mais, a falta de uma observação eleitoral capaz. As linhas de orientação da União Africana também se focam neste patamar: “órgãos eleitorais nacionais imparciais, inclusivos de todas as partes, competentes e responsáveis, dotados de pessoal qualificado, bem como entidades jurídicas competentes, incluindo tribunais constitucionais efectivos, para arbitrar em caso de disputas decorrentes da condução das eleições”.

O Tribunal foi longe de mais, ao deduzir acusação contra o PRS e a UNITA, por alegada falsificação de documentos e, no caso da UNITA, também por deter “outros [documentos] que não deveria ter na sua posse”. Aqui, não se entende que documentos, num processo eleitoral transparente, um partido concorrente não pode ter. Ali, não passa pela cabeça de ninguém que um partido reclame ou recorra em processo eleitoral, apresentando documentos falsificados. Este ataque intimidatório contra direitos dos cidadãos e de partidos recorrentes faz subir inesperadamente a tensão judicial. É como alguém queixar-se a um tribunal de bastonadas da polícia e o juiz virar a vítima em réu, porque, segundo ele, o queixoso quis, com a cabeça e o corpo, danificar o bastão policial. Oxalá, apesar da falta de observação apropriada, estejam em Angola peritos internacionais suficientes para analisar os recursos e as decisões, ouvir as partes, a CNE e o Tribunal, e poder lançar luz, com independência, sobre este tempo decisório, em conformidade com os padrões internacionais.

Observador

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