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Domingo, 10 Setembro 2017 13:46

Ainda falta a reconciliação…

A discussão sobre os resultados eleitorais veio agravar os sintomas de fragilidade do pé coxo do processo de paz: a reconciliação nacional. Apesar do sucesso do processo de paz, a reconciliação está há muito por se efectivar. Com toda a certeza foram registadas melhorias, disso não há dúvidas, mas estamos longe de estar numa sociedade em que somos tratados de igual modo. Sempre que um debate público se torna mais tenso e disputado, alguém se lembra de acusar o outro de ter estado num dos lados, de ter tido durante o conflito esta ou aquela posição, do que se conclui que, na verdade, os plenos direitos de cidadania subordinam-se à avaliação acerca do lado em que se esteve no conflito.

Por Ismael Mateus

Estamos em paz, mas não reconciliados. Aparentemente, os cidadãos dividem-se em função do lado da guerra em que estiveram e isso forma uma nova identidade aos olhos de todos. Ser visto como alguém que colocou minas, provocou a morte a pessoas inocentes matou pessoas decentes que não eram culpadas de nada. Este pleito veio exactamente reacender estes sentidos que afectam a visão de cada um em função do lado em que se esteja. Ao longo do nosso conflito armado foram-se acentuando também, de modo prolongado e profundamente enraizado na sociedade, uma imagem de ódio ao outro. Nas escolas e nas famílias, dependendo do lado em que estejam, ensinam-se às crianças coisas horríveis sobre o “eterno” opositor. Muitas famílias continuam a estigmatizar os seus membros que optam por ser da oposição, do chamado “contra” desde que não pertençam ao inimigo “eterno”. No passado, grande parte das famílias já tinham experimentado essa má experiência de divisão por opções partidárias. Agora, o governo tem de se ocupar em definir políticas que evitem novas crises intrafamiliares ou de qualquer fragmentação na sociedade por opções partidárias.

Se dúvidas existiam, a crise dos resultados relembra a polarização das nossas comunidades representadas de resto com exemplos da vida real e da virtual, onde mais velhos permitiram-se ao exercício do debate insultuoso, casos de intolerância política e de preconceito partidário, com pessoas com idades dos seus netos (futura geração). Uma autêntica vergonha envolvendo sobretudo funcionários públicos.

Definitivamente, o ciclo do processo de paz só ficará completo se formos capazes de incluir o processo de reconciliação nacional. Temos necessidade de um processo social dinâmico centrado na reconstrução sociopsicológica pós-conflito que passa pela reconstrução de identidades onde haja lugar para o reconhecimento da dignidade do outro. Como no início do conflito, joga-se aqui muito do que temos profundamente enraizado como a imagem do outro, o que nos leva a definir o comum “eles sempre foram assim”, ou “eles não mudaram”. 

É verdade que esses processos sociais e dinâmicos, pela sua grande complexidade, exigem tempo. E em nosso entender esse é o grande desafio de João Lourenço.

José Eduardo dos Santos é quase consensualmente aplaudido como o arquitecto da paz, mas, não estando o processo encerrado em todas as dimensões, cabe a João Lourenço o desafio de promover a reconciliação. No final esse deverá, se conseguir, ser o seu legado. Tem obviamente o tempo contra si, já tem um mandato de cinco anos renovável uma única vez, mas também tem as condições de paz em que encontra o país a seu favor. Ao novo presidente compete imediatamente iniciar um processo de inversão da reciprocidade negativa que nos domina, promovendo a aceitação da humanidade do outro, o respeito pela sua dignidade e direitos iguais assim como o reconhecimento da sua igual preocupação com o desenvolvimento do país.

Termine-se com a ideia de que quem propõe alternativas está a solto do “imperialismo” ou não gosta tanto de Angola como nós. O estado e os esforços do governo devem estar concentrados não na acentuação, mas na superação dos traumas e do medo, em que muitas pessoas vivem excluídas pelo único “pecado” de pensar diferente. Deve apostar igualmente na superação da cultura de violência, baseada da ideia de que só a violência permite ganhos políticos ou no uso da violência ou do medo dela como moeda de troca política ou de imposição de vontade política. 

Um dos problemas que se coloca de imediato a João Lourenço é a forma de lidar com o passado; se optará por fazer perdurar as memórias avivando-as, como fez na campanha, ou se decidirá a deixar o passado nos museus, para efeitos de avaliação e tratamento histórico e tocar a vida para frente.

Um dos instrumentos de reconciliação da nossa política é a participação de figuras independentes nos órgãos reguladores e de fiscalização. Ao contrário do que a sociedade civil sempre pediu os legisladores optaram até agora por não recorrer às práticas tradicionais de resolução de conflitos envolvendo figuras credíveis da sociedade e autoridades tradicionais. 

O governo tem de se ocupar em definir políticas que evitem novas crises intrafamiliares ou de qualquer fragmentação na sociedade por opções partidárias Democracia e Cidadania

Pelo contrário, tem-se optado por expor figuras da igreja, sobretudo evangélica, e da sociedade civil, que aos olhos dos cidadãos não ajudam mas aprofundam as mágoas e feridas por cicatrizar.

O mesmo cenário se aplica aos tribunais, que, embora contemplem a representatividade política, não conseguem assegurar aos cidadãos a ideia de que as soluções judiciais que vêm sendo encontradas vão de encontro das exigências de justiça de que o povo reclama. 

Estruturas de fiscalização e regulação como a Comissão Nacional Eleitoral, os conselhos da magistratura e dos juízes, a ERCA e outras deveriam ter uma componente absolutamente vincada por um carácter isento, sério e imaculado dos integrantes.  O facto de se indicarem pessoas que respondem a um desígnio político-partidário representa, em face das circunstâncias específicas da realidade angolana, uma séria não “garantia” de imparcialidade. Por ventura, em países em outras circunstâncias, a indicação partidária mesmo condicionada a um dado perfil poderia atender ao que se exige, mas no nosso caso o ideal é uma alteração das leis, no sentido de libertar os integrantes da lealdade partidária. Ainda não existem condições para concursos públicos, mas deveria caber ao parlamento não só definir o perfil, mas aprovar, caso a caso, gente que ofereça técnica e moralmente condições de distanciamento partidário. 

Nestas condições, poderíamos eventualmente evitar o clima geral de suspeição em que estamos e para o qual a CNE (supostamente independente) não tenha desde a sua génese, condições para atender. 

Naturalmente dedico uma breve palavra aos órgãos de comunicação social pública, que deverão ser uma estrutura central no processo de reconciliação potenciando o amor ao outro e a diversificação da visão sobre o país, ao invés de se guiar por uma política de exclusões e marginalização de quem não tenha a mesma opinião.

NJ

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