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Terça, 21 Junho 2016 09:38

"Ninguém acredita que o país e a própria Sonangol não tenham gestores com capacidade para liderarem"

O Presidente da República não esteve bem quando nomeou Isabel dos Santos, que não por acaso é sua filha, para Presidente do Conselho de Administração da mais importante empresa do país.

Por Fernando Pacheco | © Novo Jornal

E não esteve bem porque com tal medida, que pelo perfil de Isabel dos Santos e pelo historial da empresa, não só era desnecessária - ninguém acredita que o país e a própria Sonangol não tenham produzido gestores com capacidade para liderarem a empresa - como politicamente constitui um erro grosseiro. Abstenho-me de entrar na polémica jurídica, que não é a minha lavra, mas as reacções da sociedade angolana e da comunidade internacional são suficientemente reveladoras. Tentarei reflectir apenas numa perspectiva política ainda não abordada.

Poucas vozes arriscaram apresentar publicamente argumentos justificatórios da polémica nomeação. Porém, uma dessas vozes acabou por tocar, contraditoriamente, num ponto fundamental. Segundo o analista político João Paulo Nganga, o nível de popularidade do Presidente e da sua família está "extremamente baixo". Nessa circunstância, torna-se difícil imaginar que a nomeação não esteja a contribuir para aumentar tal impopularidade.

Do mesmo modo, a credibilidade do Presidente a nível internacional atingiu o nível mais baixo desde 2002. A ausência de medidas de combate à corrupção, a má imagem de Angola nos mercados financeiros internacionais e a inépcia revelada na diversificação da economia, quando os recursos disponíveis eram mais do que suficientes para o país dar passos seguros para se tornar uma verdadeira potência emergente no contexto regional, causaram sérios danos à imagem do país. A incapacidade revelada para se encontrar uma saída da crise que não seja pela via do aumento do preço do petróleo tem sido aproveitada para sustentar essa perda de credibilidade.

A estratégia do Presidente para o desenvolvimento do país assenta essencialmente no modelo das grandes obras e projectos que nos anos 60 e 70 foram denunciados por vários teóricos do desenvolvimento, entre os quais o egípcio Samir Amin. É desolador que Angola tenha cometido exactamente os mesmos erros.

Penso, no entanto, que esse tipo de estratégia é uma atracção fatal. Não foi por acaso que o erro tenha sido cometido por quase todas as lideranças nos primórdios das respectivas independências. Era preciso recuperar o tempo "perdido" e procurar mostrar aos antigos colonizadores que nós, africanos, "somos nós mesmos". O próprio Presidente José Eduardo dos Santos expressou um raciocínio similar quando, há quase dez anos, afirmou que Angola iria estar, em dez anos, ao nível do Brasil e da África do Sul.

E aqui surge o nó górdio. Gerir um país no contexto angolano no sentido da modernização acelerada é um desafio praticamente impossível. Saliento o termo "acelerada" para evitar interpretações abusivas. Se por um lado, de acordo com as teorias do desenvolvimento já consagradas, a modernização exige inclusão dos cidadãos, por outro, as elites condutoras rapidamente voltam a si e às suas origens quando o contexto sofre alterações incontroláveis. Isto tem a ver com o conceito de precariedade, que alguns antropólogos tratam muito bem e mostram que não é apenas uma característica dos africanos. Um cidadão parisiense que normalmente não cumprimenta ninguém quando chega à estação do metro, fá-lo em dia de greve, porque precisa de encontrar uma alternativa.

Isto explica porque Isabel dos Santos foi nomeada. O Presidente fez-se notar, durante anos, por ausência de nepotismo na sua governação. Porém, em situação de crise os chefes procuram rodear-se de pessoas da sua inteira confiança - e os factos em Angola estão a demonstrar, como defendo há muito, que a crise angolana não começou em 2014.

Mas isto irá chocar com outras dimensões da crise e da gestão do país, entre as quais a problemática transição de poderes na chefia do MPLA e do Estado. De acordo com os princípios democráticos - que não por acaso começam agora a ser questionados na sua aplicação a África - este assunto deveria ser discutido no seio da direcção do MPLA de modo aberto e os cidadãos informados para não se sentirem excluídos. Mas não me parece que isso esteja a acontecer. Esperemos para ver.

2. Os acontecimentos das últimas semanas no Cunene são reveladores de dois factos. O primeiro é o modo indecoroso como algumas das elites do país procuram apoderar-se de bens que não lhes pertencem a pretexto de quererem desenvolver os famosos projectos de larga escala que, segundo eles, irão contribuir para a diversificação da economia, procurando enganar quem quer deixar-se enganar, pois está mais do que provado - apesar das tentativas sem pudor e ao mesmo tempo ingénuas de certos analistas em mostrar que "só não vê que as coisas estão a melhorar quem não quer ver" - que tais projectos serão novos fracassos e servirão apenas para os seus promotores acederem a mais mordomias. E muitas dessas elites já provaram que não são capazes de gerir bem os seus negócios. As províncias da Huíla e do Cunene estão cheias de exemplos, nem é necessário procurar muito.

Neste caso concreto da terra, desde há muito que se desenhava o cenário agora vivido, e só não aconteceu antes porque a agricultura, enquanto o petróleo estava a bater, só servia para os novos fazendeiros terem locais de ostentação de riqueza para amigas e amigos. Agora que o Executivo decidiu canalizar para o sector privado recursos anteriormente destinados a investimentos públicos, começou a correria aos grandes projectos, o que provocará inevitáveis conflitos com os agricultores e criadores de gado que vivem das terras que foram e continuam a ser cedidas sempre pelo Executivo. Ou seja, chegou a Angola o fenómeno do land grabbing, isto é, da caça da terra, primeiro por nacionais, que depois de falidos a vão ceder a estrangeiros, um dos maiores problemas de África na actualidade.

E chego ao segundo facto. A sociedade civil não-alinhada com o Executivo tem vindo a ser menosprezada e marginalizada, mas tem resistido de modo que não pode ser ignorado. Algumas das suas organizações têm sido acusadas de estarem ao serviço de interesses estrangeiros, algo que não está provado e nem pode ser generalizado. O seu protagonismo, goste-se ou não dele, justifica plenamente que elas sejam ouvidas e incluídas num debate geral sobre problemas que representam causas que elas, essas organizações, defendem há anos. A da terra e a das expropriações são dois exemplos.

O Secretário de Estado dos Direitos Humanos, respondendo a questionamentos levantados por elas sobre os casos recentes no Cunene, garantiu que o problema seria resolvido a contento das populações lesadas, o que pode representar uma vitória. Não sei se o Secretário terá poder para enfrentar os interesses que estão por trás dos projectos em causa. Mas saliente-se a corajosa denúncia do Bispo de Ondjiva que comparou a situação vivida com outras acontecidas no tempo colonial.

Conhecedor do grave assunto das terras e dos conflitos que elas geraram ao longo da nossa história, no Norte onde catalisou o início da luta armada em 1961 e no Sul, onde provocou a última grande revolta dos Kuvale em 1940 (ver escritos do saudoso Ruy Duarte de Carvalho), e fez com que o antigo governador-geral de Angola, Rebocho Vaz, fosse humilhado pelos Kuanyama, recomendo vivamente ao Executivo que tenha muito cuidado com este delicado problema. Em vez de fazer alterações à lei de terras para favorecer interesses escusos, deve procurar primeiro estudar seriamente a situação, podendo começar a aplicar a lei para os casos em que as terras estão ociosas desde há décadas, mas os títulos caducados pertencem a membros da elite que não podem ser tocados.

*Coordenador do Observatório Político e Social de Angola

 

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