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Quarta, 12 Setembro 2018 12:16

João Lourenço leva JES ao tapete por nocaute histórico

6º congresso do MPLA foi o epílogo da maior batalha palaciana já ocorrida na historiografia política recente de Angola

Ruiu fragorosamente todo e qualquer plano que o antigo Presidente angolano, José Eduardo dos Santos (JES), tenha orquestrado no sentido de vir a comandar, por controlo remoto, o seu sucessor. João Lourenço triunfa por ‘nocaute’ ao cair do pano sobre o 6º congresso extraordinário do MPLA, que já pode ser considerado como o epílogo da maior batalha palaciana ocorrida na historiografia política recente de Angola. Com JES – até prova em contrário, agora completamente fora da cena política – João Lourenço assume integralmente a liderança do partido sem se ver subjugado ao seu antecessor. Dispõe agora também das condições para materializar as suas opções de governação sem espartilhos nem subserviências, tendo por bitola apenas os ditames de sua própria consciência, o programa do seu partido e os postulados da Constituição da República.

No entanto, o momento dá azo a que as pessoas se interroguem sobre o que daqui para a frente poderá vir realmente da cabeça de um João Lourenço que se revela afinal, um político desconcertante. Olhando pelo retrovisor, há um ano poucos lhe atribuiriam condições para surpreender, libertando-se das amarras que o seu antecessor lhe pretendia impor, e correr pelos próprios pés. Aqui mesmo no Correio Angolense, quando a 4 de Abril de 2017 foi lançado este jornal electrónico, projectámos que em caso de vitória eleitoral do MPLA, João Lourenço pouco mais seria do que uma marioneta de JES.

Mas havia razões para o cepticismo, que se explicava logo a partir do dado intrigante e enigmático que se abria com a possibilidade inédita no país de uma partilha do poder (a bicefalia alvitrada já então por um dos históricos do MPLA, Lopo do Nascimento), que resultaria de uma difícil coabitação entre JES e João Lourenço – o primeiro por continuar à frente do partido e o outro na chefia do Estado.

Por outro lado, João Lourenço inaugurava a sua presidência sem dinheiro para fazer cantar um cego. A Sonangol estava nas mãos de JES por via de Isabel dos Santos, que tinha além do mais o controlo do sistema bancário. Zenu, Tchizé e Coreon Du controlavam a comunicação social pública e privada.

De facto, nessas circunstâncias, o cenário de virmos a ter um novo PR em condição de total vassalagem a JES e sua família reunia bastas probabilidades de vir a materializar-se. Havia apenas um senão – para o qual o Correio Angolense chamava a atenção naquela altura – que se colocaria na hipótese de João Lourenço, em caso de triunfo eleitoral, surgir completamente transfigurado e senhor do seu nariz. Ou seja, disposto a bater o pé e lutar pela sua autonomia, desafiando assim o eduardismo, regime que ameaçava prolongar-se de forma encapotada no pós-eleições.

"O novo Presidente angolano surpreendeu tudo e todos, mas quem ele enganou (e bem) foi sobretudo o próprio JES. Fingindo-se de ‘morto’ para grandes ambições em matéria política, Lourenço ficara, na verdade, a aguardar pela oportunidade de reaparecer. O descanso sabático servira-lhe para amadurecer e tirar lições de política."

As conjecturas quanto à possibilidade de uma “revanche” por parte de João Lourenço não eram assim tão remotas. Quanto mais não fosse pelo facto de que ele saíra de uma situação de quase clausura a que foi sujeito depois de ter sido literalmente abalroado no decurso dos acontecimentos que ditaram o seu afastamento de secretário-geral do MPLA, durante o congresso do partido realizado em 2003. João Loureço pagava então pela «ousadia» de ter feito declarações públicas que foram avaliadas como sendo uma pressão indevida para que JES cumprisse a promessa que fizera, já por aquela altura, de se retirar da vida política activa.

E é aqui, realmente, que está um dos aspectos que eventualmente explicarão todo o furacão que se desenrolou quando João Lourenço assumiu efectivamente o leme do país. O novo Presidente angolano surpreendeu tudo e todos, mas quem ele enganou (e bem) foi sobretudo o próprio JES. Fingindo-se de ‘morto’ para grandes ambições em matéria política, Lourenço ficara, na verdade, a aguardar pela oportunidade de reaparecer. O descanso sabático servira-lhe para amadurecer e tirar lições de política. Tinha aprendido que não era com truculência que se vencia nesse métier. Era preciso saber esperar o melhor momento para desfechar o ataque.

O silêncio e a quietude de Lourenço terão enganado JES que, em 2016, ao cogitar a sua saída definitiva da cena política, viu no antigo adversário a pessoa mais à mão, no interior do regime, para transformar no seu sucessor. Depois de ter ficado sem aqueles que seriam os seus delfins prediletos – Osvaldo Serra Van-Dúnem, por falecimento, e Domingo Pitra Neto, que se recusara por opção própria –, JES chamou João Lourenço para uma espécie de “aquecimento” antes do seu lançamento oficial e efectivo no jogo da sucessão, quando o nomeou como ministro da Defesa. Quem teve olhos para ver terá reparado que, nessa pasta, João Lourenço foi por diversas vezes indicado para ser o substituto do Chefe de Estado angolano em importantes eventos e missões no estrangeiro, sobretudo na região, que em condições normais seriam entregues ao chefe da diplomacia do país.

Hoje que se faz uma espécie de reconstituição dessa disputa, uma das incógnitas por desvendar ainda põe-se em saber ao certo se João Lourenço terá firmado algum tipo de pacto de cavalheiros com José Eduardo dos Santos. É que pode não se saber exactamente que tipo de concertação ambos terão estabelecido, mas é fácil presumir que JES seria por demais inepto se não negociasse algum acordo nos termos do qual fossem definidos e estabelecidos os marcos por que João Lourenço se guiaria enquanto Presidente da República. Um pacto, enfim, relativamente a alguns assuntos cruciais e pessoas, entre os quais seguramente a protecção e segurança a conferir ao seu próprio clã e, nisto tudo como é natural, a questão das fortunas controversas. Nada, na verdade, que não se enquadre nos cânones da «realpolitik», muito natural nas circunstâncias em que JES se encontra(va), necessitando de fazer uma transição do poder que pudesse assegurar tranquilidade para si e o núcleo duro da sua parentela – no caso, seus descendentes directos.

Acredita-se que um dos erros de JES terá sido o de encostar o seu sucessor ao limite das cordas. João Lourenço partiu para o seu consulado presidencial herdando uma estrutura estatal praticamente falida, sem dinheiro nos cofres até para assuntos triviais e de gestão corrente, como o pagamento de salários aos funcionários públicos. A tensão subiu ao ver que, deixando o comboio marchar, arriscava-se a não ter a Sonangol e, sem isso, não teria as receitas petrolíferas para amenizar a crise financeira.

João Lourenço estava realmente na iminência de ser um presidente decorativo que nem sequer poderia cogitar ambicionar ser reeleito para um segundo mandato. Mas o problema maior ainda era em relação aos objectivos gerais da própria grande família partidária que se arriscavam a ir pelo ralo sem a garantia de boa governação durante o primeiro mandato do novo Presidente da República. Com os níveis de popularidade do MPLA nas lonas e o descontentamento dos cidadãos a somar-se a cada dia, acredita-se que já não foi essencialmente movido por qualquer desejo de se vingar dos desagravos sofridos no passado que João Lourenço teve de atirar para a trituradora dos papéis algum pacto que tenha firmado com JES e passar a fazer o que lhe competia como Chefe de Estado efectivo.

Daqui para a frente a hora é de se projectar como João Lourenço se irá descoser no que diz respeito a alguns dossiês sobre os quais prometeu engajamento total, nomeadamente a cruzada contra a corrupção, que entronca sobretudo com a questão do repatriamento dos capitais, cujo dead-line se aproxima. Tem agora a oportunidade de, em termos de recursos humanos, realinhar quer a máquina partidária, como o aparelho governamental em conformidade com os seus critérios – algo aliás que já começou a fazer ao nível da direcção do MPLA, onde as mudanças tiveram uma dimensão sísmica.

Tudo o resto é coisa que estará na cabeça do próprio João Lourenço.

Por Severino Carlos | CA

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