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Domingo, 25 Novembro 2018 10:40

Dom Caetano: Contra "lixo" musical, defende comissão de avaliação para corrigir o que está a ser mal feito

Dom Caetano, músico angolano com mais de 40 anos de carreira, acredita que se houver investimento na formação artística para definição de padrões de qualidade e a criação de um órgão que faça controlo do sistema de produção de discos o futuro será risonho para classe.

“É preciso que se encontre uma fórmula que acabe em comissões de avaliação, para não se permitir que todo o lixo seja colocado ao dispor dos consumidores”, diz o artista e explica o por quê do seu posicionamento. Siga a entrevista exclusiva à ANGOP, na íntegra.

ANGOP - Que análise faz da música angolana?

Dom Caetano (DC): A música angolana feita hoje está assolada pelo imediatismo, por uma carga de sensacionalismo e de algum descontrolo emocional dos fazedores. Para se fazer arte, para se entrar nesta área, não é necessário que se aposte na mesquinhez, no mundo da mediocridade e nem sequer da promiscuidade. Infelizmente, muitos autores pensam que fazer qualquer coisa que, de forma imediata, passa para a boca do povo e que o encanta é o que vai ser bom. Não. Para se produzir arte, deve haver seriedade em toda a sua dimensão. Tem que ser assim na música, no teatro, nas artes plásticas, entre outras correntes.

A arte musical desenvolveu-se ao longo dos últimos 20 anos, mas ainda falta orientação, porque não existe uma avaliação ou censura do que se produz. Tudo quanto se faz, bom ou mau, passa pelas rádios e pelas televisões, criando a ideia de que estamos a fazer música.

Contudo, estamos a produzi-la com muita carga inadequada para a educação da juventude. Por outro lado, o crescimento, em termos de obras publicadas, não é acompanhado pelo aumento da qualidade. Precisamos de trabalhar muito nesta vertente.

Há uma aposta forte no capítulo da imitação, o que não é bom. Podemos fazer o uso de qualquer influência, trazê-la para nós e melhorar a nossa produção. Temos de ser nós mesmos, ainda que tenhamos uma influência de uma música do ponto de vista francófono ou anglófono. Temos de deixar de fazer o “copy & past” de um artista estrangeiro e depois vir afirmar que o fulano está a bater, quando sabemos que não é o dono da música. É preciso que se encontre uma fórmula que acabe em comissões de avaliação, para não se permitir que todo o “lixo” seja colocado ao dispor dos consumidores.

No passado, havia um organismo que se chamava Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA), uma estrutura colonial dos anos 70 a 74, que tinha por missão avaliar o conteúdo e a mensagem das letras, mesmo antes de o seu autor entrar em estúdio. Hoje, sem ninguém para isso, qualquer pessoa escreve uns rabiscos e entra no estúdio para gravar, saindo daí muito produto que deixa a desejar.

Não estou a falar de uma comissão de censura, mas, sim, de se produzirem linhas de orientação, uma comissão de avaliação. Se não nos preocuparmos em produzir valências para corrigir o que está a ser mal feito, vamos continuar a errar.

ANGOP - O que se produz está em condições de rivalizar com a música de outros países africanos, em particular a cabo-verdiana?

DC: Está, mas a aposta feita está errada. O foco dos promotores angolanos não deve ser o mercado europeu, mas, sim, o africano. Se dominarmos o mercado africano, vamos, muito facilmente, entrar na Europa. Porém, a tendência dos músicos nacionais é esta: ao invés de irem para África, apostam no velho continente.

Considero mais fácil ir ao Congo Brazzaville, Congo Democrático, Gabão, Senegal, por serem países mais perto do nosso. Raramente, passamos um ano sem ver um artista congolês em Angola. Então, por que razão não podemos ir para lá mostrar o nosso trabalho? Os promotores culturais não têm feito um bom trabalho no que à divulgação e à valorização da música angolana diz respeito, devem apostar mais na divulgação do que é nosso, em África.

ANGOP – Será preguiça criativa dos artistas nacionais?

DC: Infelizmente, não se avalia o trabalho que se faz, e cada um faz o que quer. Tem que haver uma aposta na avaliação e na orientação, para que os artistas se conduzam. Precisamos de um órgão que faça o controlo do sistema de produção de obras discográficas. É uma pena que até hoje ninguém saiba quem é o músico que mais discos vendeu no país. Temos que encontrar métodos ou paradigmas para começar a produzir linhas orientadoras, a fim de que a classe seja mais bem conduzida.

ANGOP – Há mais de 30 anos ligados à música, que balanço faz da sua carreira?

DC: Tenho uma carreira que considero ter atingido níveis positivos. Entrei, definitivamente, no agrupamento Os Jovens do Prenda, em 1987, depois da doce passagem pelo jornalismo, na ANGOP, apesar de fazer parte do grupo desde 1985, em tempo incompleto. Fui o rosto principal da banda nos anos 80, a seguir a Zecax, com a Nova Cooperação. Tive também uma passagem pelo Instrumental 1.º de Maio, onde fiz o sucesso “Sou Angolano” e “Maka”, canções que produziram a minha identidade. Com a Nova Cooperação, venci o Prémio “Welwitschia”, promovido pela Rádio Nacional de Angola, que, em contrapartida, só teve uma edição.

ANGOP - Que experiência tirou do jornalismo?

DC: A minha entrada no jornalismo, particularmente na ANGOP, resulta de uma participação num seminário promovido pelo Centro de Imprensa Aníbal de Melo, cujo formador foi Neiva Moreira. No fim do mesmo, ele orientou que cada um produzisse um texto, para mostrar o que se aprendeu durante o evento. Acontece que redigi um que deu letra à música “Sou Angolano”, intitulado “Dança angolana nos anos 60”, um texto investigativo, onde consegui descortinar nomes como Joana Roque “Joana Pernambuco”, Armindo João de Almeida “Jack Rumba”- rei do rumba, Pedro Franco “Pedro Donzela Franco” – o rei do tango, João Cometa, Adão Simão e Mateus Pelé. Consegui escrevê-lo porque tive como fonte primária a Joana Pernambuco, por sinal minha tia, que me forneceu muitos dados sobre o mundo da dança.

Por ter simpatizado com o texto, Moreira veio ter comigo e perguntou-me se gostava de jornalismo, e respondi-lhe que sim. Posteriormente, ele foi conversar com Raimundo Sotto Mayor, para que facilitasse um estágio na ANGOP, a fim de ver se eu servia nesta área. Como na altura eu tinha regressado de Cuba e interessava à ANGOP abrir uma redacção espanhola, foram admitidas quatro pessoas e lá estava eu amarrado entre o jornalismo e a música.

Ao longo da minha curta passagem pela Agência, tive a felicidade de fazer a cobertura de um festival de música em Argel e, no final, uma entrevista ao então embaixador de Angola na Argélia, Ico Carreira. Assim, fui ganhando espaço na imprensa. Porém, por requisições do partido, da JMPLA, saídas constantes para participar em eventos culturais, bem problemas que foram surgindo na redacção, face às minhas ausências, Raimundo Sotto Mayor achou que o ideal seria liberar-me do jornalismo, para apostar seriamente na música. Fui dispensado com seis meses de salário e um certificado que atesta a minha passagem por este mundo.

ANGOP – Voltando à música. Está com novos projectos e um dos quais destinado a apoiar famílias de colegas falecidos ou com dificuldades…

DC: Fiz o disco “Divina Esperança”, com o intuito de homenagear dois colegas: Zé Keno, que foi o meu mestre no agrupamento “Os Jovens do Prenda”, a pessoa que conduziu com profissionalismo a banda durante os anos em que lá estive e os anos que se sucederam, depois da minha saída. Considero-o ter sido um dos mais emblemáticos solistas da música angolana. Durante a minha passagem pelo colectivo, fui submetido a um teste, entregando-me à interpretação da música “Nova Cooperação”, que se tornou o sucesso que ainda é no mercado nacional.

Trata-se de uma música cuja letra, no princípio, foi mal entendida, e o Zé Keno, quando a escreveu, achou que seria a melhor pessoa a cantá-la, tendo em conta que estava ligado às estruturas do partido e, portanto, poderia ser mais bem compreendida. Por outro lado, homenageio o Beto de Almeida, um músico de uma geração que deu um grande contributo ao longo do período da guerra civil no país, que não olhou a meios para animar as tropas na frente de combate, com a sua viola. A intenção é ajudar colegas e famílias com dificuldades. Do pouco que se conseguir, alguma coisa será canalizada para os familiares em causa.

ANGOP - O que procura transmitir nas suas músicas?

DC: Trato sempre de evitar o fictício, o surrealismo. Gosto de atacar factos. Inspira-me mais o real do que o surreal e o fictício. O fictício é imaginário e nem sempre o imaginário conserva e, quando assim acontece, produz pouca inspiração. Prefiro ir buscar provérbios em Kimbundu, como é o caso da música “Uegia kusokana”, cujas letras carregam mensagens educativas, construtivas e que contribuam para a preservação e divulgação dos valores e da identidade dos angolanos.

Os provérbios são ditos de sábios e com ensinamentos bastante positivos, que devem ser lembrados sempre. As mensagens das minhas músicas são alertas e críticas, para que as pessoas saibam que é preciso saber caminhar e escolher quem está ou estará ao lado de si durante uma jornada.

ANGOP - O que é a música angolana para si?

DC: A música angolana é o substrato cultural e de identidade do povo angolano, é o melhor elemento que atinge outras latitudes e que melhor identifica e transmite a cultura. Ela reúne o maior leque de multidões e transporta o público para aulas sobre a cultura dos povos.

ANGOP - Há quem defenda que, quando se fala de música angolana, se está a falar apenas do semba ou do kilapanga…

DC: Errado! O semba é simplesmente o estilo e o ritmo de música que mais se evidenciou ao longo dos últimos 60 anos. A kazukuta, a cabetula e o kuduro também fazem parte da lista das músicas angolanas. Devemos estar conscientes de que a identidade desta arte no país não está somente no semba. Temos que acabar com discussões desnecessárias e promover acções que levem os outros povos a saberem que Angola é um mosaico cultural. Temos que nos concentrar e defender o que é nosso, para evitar que os estrangeiros se apoderem da nossa riqueza, como no caso da kizomba.

ANGOP - O mercado musical perdeu muitas referências, como os agrupamentos. O que provocou o desaparecimento de “Os Jovens do Prenda”, “Os Kiezos”, entre outros?

DC: Faltaram políticas culturais para o direccionamento e para a protecção. Por exemplo, onde é que um conjunto musical, nesta altura, vai comprar instrumentos? Em Angola, tudo fica muito caro. Para ir ao estrangeiro, vou precisar de divisas e o mercado não as tem. Para gravar um disco, começamos por aqui e a parte final é no estrangeiro, isto porque os estúdios no país não têm condições para finalizar o trabalho.

Não formamos, não cuidamos das pessoas, não apostamos nos recursos humanos, mas podemos corrigir e a entrada em cena da Secretaria de Estado para as Indústrias Culturais e Recreativas é um grande passo.

ANGOP - Qual tem sido a sua fonte de inspiração?

DC: Normalmente, tem sido o mundo circundante, isto é, as pessoas com quem convivo; as histórias que ouço; as leituras que faço e os problemas que enfrento. Em cada uma destas facetas, encontro sempre uma razão para escrever uma música. A minha veia jornalística também me tem ajudado muito.

ANGOP - Tem um reportório e com músicas que marcaram e continuam a marcar o panorama angolano. Qual delas mais assinalou a sua carreira?

DC: “Sou Angolano”. Produzi esta música há 30 anos e, ao longo destes, continua a fazer sucesso.

ANGOP - Relacionamento entre a velha e a nova geração de músicos angolanos. Como está?

DC: É ainda conflituoso. Primeiro, porque a lei da negação diz que o novo substitui o velho e, se o velho não compreender isto, naturalmente vai rivalizar. Segundo, os mais novos devem compreender que é dos mais velhos de onde recebem a orientação para seguir no futuro. Qualquer músico da nova geração, para falar da música angolana, deve, obrigatoriamente, falar com os mais velhos.

A sociedade musical andou dividida por esta falta de compreensão, tanto da parte dos mais velhos como da parte dos mais novos. Como se não bastasse, os mais velhos quiseram impor as suas valências aos mais novos, e, a dado momento, dissemos que tínhamos de constituir os músicos da primeira grandeza, um erro.

ANGOP - Já se vive da música em Angola?

DC: Não.

ANGOP - O que falta para acontecer?

DC: Para se viver da música em Angola, é necessário que os artistas comecem por ganhar os direitos de autor. Para isso, deverá haver uma indústria cultural no país. É importante que os resultados sirvam de facto, a fim de que o músico possa sustentar-se e sustentar a sua família. Não se pode viver da música só porque ganhamos três milhões de kwanzas num prémio ou porque recebemos um milhão de kwanzas de cachet num espectáculo.

É falsa a ideia de que, no país, existem artistas que vivem exclusivamente dos resultados da música. É verdade que temos alguns músicos da nova geração que já conseguem tirar algum encosto para se acomodar, mas meia dúzia não significa que temos artistas a viver da música. Devemos ser francos e, de facto, ter a coragem de dizer o que não está bem.

PERFIL

Em 1972, com apenas 16 anos, Caetano Domingos António ou simplesmente Dom Caetano iniciava os primeiros passos no canto. Foi no início dos anos 70 que se juntou a um grupo de amigos e formou a banda "The Seven Boys", no Sambizanga.

Em Lisboa, gravou a primeira obra discográfica, intitulada "Adão e Eva", um CD que teve grande aceitação do público e dos críticos. "Uegia kusokana" e "Semba Dilema" foram dois grandes sucessos deste trabalho. A sua perspectiva musical denota a adopção de um esquema de composição, inspirado em questões de índole social e cultural, numa linha de continuidade da música elaborada por antigos compositores angolanos.

Foi vencedor do “Prémio Welwitchia”, atribuído pela Rádio Nacional de Angola, em 1987, como vocalista de “Os Jovens do Prenda”, com a canção “Nova Cooperação”, e, em 1991, ganhou o prémio da União Nacional dos Camponeses de Angola, com “O meu chão tem tudo”. Foi ainda vencedor do primeiro e único Prémio Sonangol da Canção, em 1996, com a música “O pecado carnal”. Ficou em sétimo lugar, num universo de 10 concorrentes, no primeiro Festival da Canção Política, organizado pela JMPLA, em 1982, na cidade do Huambo.

Está ligado à música há 44 anos, subiu pela primeira vez ao palco em 1973, no Centro Cultural “Os Anjos”, no Sambizanga, e foi acompanhado pelo conjunto “Astros”. Nesse mesmo ano, em companhia de alguns amigos dos bairros Mota e Cabuite, formou o conjunto “Os Sete Amigos”.

Ainda em 1973, esteve ligado ao “Surpresa 73”, do Rangel, como guitarrista-baixo. Passou, também, pelos “Sete Incríveis”, do Sambizanga. Entre 1976 e 1979, como vocalista, actuou no Combo Revolución, em Havana. De 1985 a 1996, foi vocalista de “Os Jovens do Prenda, passando pelo Instrumental 1.º de Maio. De 1999 a 2001, fez parte da Banda Movimento, que, na altura, era pertença do Movimento Nacional Espontâneo. De 2003 à presente data, tem estado ligado à Banda Movimento, da Rádio Nacional de Angola.

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