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Sexta, 26 Janeiro 2018 15:10

SIC e PGR de mãos dadas na tortura da justiça

“Um dos agentes ameaçou-me assim: ‘Se tu não mostrares onde está o teu cunhado, vamos queimar-te e vamos deitar o teu corpo onde ninguém te vai achar e vamos queimar a casa onde vive a tua família.’”, conta Abel Bernardo Cambolo, de 15 anos, sobre o seu calvário às mãos dos agentes do Serviço de Investigação Criminal.

Mais tarde, Abel Cambolo identificou, no comando de divisão do Talatona da Polícia Nacional, o seu torturador psicológico como sendo Edivaldo Joaquim Oliveira, o agente que comandou a operação de busca e captura de Lucas Adolfo Gunza, de 31 anos, seu cunhado.

“O outro apontou-me a pistola à cabeça, pressionou-a contra mim e aí eu disse que mostraria onde estava o meu cunhado, que se encontrava na Igreja do Bom Deus, a rezar”, conta o adolescente.

“No recinto da igreja, o meu cunhado estava com os pastores, quando lhe apontaram a pistola e começaram a espancá-lo ali mesmo”, denuncia.

Porquê essa violência?

Lucas Adolfo Gunza é um dos membros da comissão de camponeses que, durante vários anos, lutou contra a expropriação violenta dos seus terrenos, na zona do Bita-Sapú, no município de Viana, levada a cabo pela Fundação Eduardo dos Santos (FESA) e por uma empresa de construção civil, a Solisac, ambas fortemente apoiadas por efectivos militares do Posto de Comando Unificado e por agentes da 49.ª Esquadra.

O presidente do Observatório de Justiça e Coesão Social, Zola Bambi, que tem acompanhado o caso, intervém: “Depois de várias demolições, expropriações, detenções e actos de violência contra os camponeses, chegara-se a um acordo com a Solisac e a FESA, com a colaboração da comissão, que demarcou os terrenos para os camponeses.”

“Como compensação, os camponeses atribuíram uma parcela de terreno ao Lucas, onde ele construiu duas casas. Passou a habitar uma e vendeu outra, em Janeiro de 2017, por quatro milhões de kwanzas”, explica Zola Bambi.

“Já estávamos a viver no projecto [no terreno ganho, onde os camponeses construíram um projecto habitacional] há quatro anos. Mas, a 22 de Junho de 2017, os homens da Solisac vieram, acompanhados pela polícia e um homem do tribunal, a dizer que perdemos a causa e despejaram-nos das nossas casas e entregaram-nas a outras pessoas”, lamenta a camponesa Imaculada Kimbango, mãe de Lucas Gunza.

“O Lucas e o indivíduo que comprou a casa, José da Rosa Tango, também foram despejados”, continua Zola Bambi.

Aparentemente, este foi o crime de Lucas Adolfo Gunza, que se encontra detido desde o dia 4 de Janeiro.

Durante as férias judiciais, a 9 de Fevereiro de 2017, a juíza Fernanda Domingos, da 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, deu provimento à providência cautelar requerida pela Solisac, mas a acção de restituição provisória da posse de terreno só aconteceu mais tarde, a 22 de Junho.

Em defesa dos camponeses, a Associação Mãos Livres interpôs recurso, mas o advogado António Gaspar revela que a juíza não admite o recurso, o que originou uma reclamação junto do Supremo Tribunal.

Com o despejo a que foi sujeito a correr os seus trâmites na justiça, Lucas Gunza produziu, a 17 de Setembro do ano passado, um termo de compromisso, reconhecido no notário, assumindo a devolução do dinheiro a José da Rosa Tango. Este último reconheceu, junto da advogada Mónica Domingos, ter o documento em sua posse.

Entretanto, a mesma juíza proferiu uma segunda decisão, a 29 de Setembro de 2017, notificando a Solisac para que se abstivesse “de praticar actos que excedam” o objecto da sua decisão de restituição provisória da posse do terreno. Já nessa altura a empresa tinha desalojados moradores, ocupado residências e demolido casas.

A queixa e a detenção

Estranhamente, a queixa contra Lucas Adolfo Gunza foi apresentada pelo intermediário do negócio, José João. Este recebera do primeiro, na altura, uma comissão de 400 mil kwanzas (10 por cento do valor total da venda).

“O participante da queixa não tem legitimidade para fazê-lo. Ficámos a saber que o José Tango, o comprador, pediu ao intermediário José João para apresentar a queixa”, denuncia a advogada Mónica Domingos.

Com ou sem legitimidade, foi José João quem praticamente dirigiu a operação de busca e captura de Lucas Adolfo Gunza, tendo transportado os agentes do SIC na sua viatura, uma Toyota Hilux, no interior da qual os agentes ameaçaram queimar o adolescente Abel Bernardo Cambolo.

“Eu estava a fazer limpeza e ia a sair do quintal quando o [investigador do] SIC me chamou. Um deles agarrou-me pela cintura e disse à minha irmã (esposa de Lucas): ‘Já que não queres mostrar onde está o teu marido, vamos levar o teu irmão.’ Já no carro, deram-me antes muitas chapadas, incluindo na nuca”, conta Abel Cambolo.

Nem Tomás, o filho de Lucas Adolfo Gunza, com apenas três anos, escapou à violência dos agentes do Serviço de Investigação Criminal. “Um deles [Edivaldo Joaquim de Oliveira] pegou também na criança de três anos e começou a puxá-la, para ela indicar onde estava o pai. Eu disse que ele era muito pequeno para saber e puxei-o, e ele puxou do outro lado, a criança começou a chorar muito e só então a largou”, conta Fátima Cambolo.

“O agente do SIC que trabalha na 24.ª Esquadra do Benfica ameaçou-me que me partiria a cabeça com um bloco [de construção], porque eu protestava por levarem o meu irmão menor como refém”, denuncia a mãe e irmã.

Acto contínuo, segundo Fátima Cambolo, “o agente do SIC que trabalha no Talatona [Edivaldo Joaquim de Oliveira] apontou-me a pistola e disse-me para não os seguir. Chamou-me mentirosa por ter dito que não sabia do paradeiro do meu marido”. Finalmente, “o terceiro agente do SIC vasculhou a casa toda e roubou os 200 mil kwanzas que encontrou no meu quarto”, revela.

O procurador Cambuta

Já em detenção, inicialmente na 24.ª Esquadra do Benfica, Lucas Gunza, conforme denúncia da advogada Mónica Domingos, foi coagido a entregar duas casas ao intermediário, em troca da sua liberdade.

Aconselhado pela advogada a não fazê-lo, foi transferido para a cadeia de Luanda, onde se encontra detido até ao momento.

Mónica Domingos salienta que “Lucas Gunza nunca foi notificado da queixa. Quando o foram deter ele não sabia de nada. Só lhe apresentaram o mandado de captura quando já se encontrava na cela e a polícia ficou a saber que os seus advogados estavam a caminho”.

“Não se percebe como o procurador José Rodrigues Cambuta legaliza a detenção ilegal de um cidadão por um caso cível de disputa de propriedade, e eivado de abusos e actos de violência contra o cidadão e a sua família”, questiona Zola Bambi.

Maka Angola fez vários telefonemas ao procurador o procurador junto do SIC,  na Divisão de Polícia do Talatona, José Rodrigues Cambuta, para ouvir a sua versão dos factos, mas este não retornou as chamadas.

A chantagem de Jó

Entretanto, às 6h00 do dia 19 de Janeiro, José João “Jó” dirigiu-se à casa onde reside a mãe de Lucas Gunza, Imaculada Kimbango, e, temporariamente, também a sua esposa e o seu filho.

“O Jó disse-me e à minha nora que tínhamos de abandonar esta casa para lhe entregar a ele e arranjarmos mais uma. Só assim ele ordenaria a libertação de Lucas Gunza. Exigia também a compra de mosaicos, outros materiais e cimento para ele fazer obras de melhoria na casa”, denuncia Imaculada Kimbango.

Para além das duas casas exigidas pelo intermediário, em conluio com os homens do SIC, Lucas ainda teria de trabalhar para pagar os quatro milhões de kwanzas a José Tango, o comprador da casa espoliada pela Solisac.

“Como não teve boa resposta, então o Jó pediu uma casa e afirmou que se não lhe entregarmos esta casa, ele vai deixar o Lucas morrer na cadeia”, conta a mãe.

“Eu disse, está bem. Deixem-no morrer na cadeia. Essa é a vossa justiça, é o que vocês, o SIC e a procuradoria querem. Então, o Jó acusou-me de não ter coração, que não queria salvar a vida do meu filho”, explica Imaculada Kimbango.

A mãe reagiu, afirmando que quem não tinha coração era o intermediário, por estar a roubar a sua família e a privar o seu filho de liberdade ilegalmente.

“Ele [Jó] insistiu, dizendo que eu não tenho amor por não querer abandonar a casa, com a nora e o neto, para lhe entregar a ele, em troca da liberdade do meu filho. Respondi-lhe que já não tinha palavras para ele e ele ameaçou-nos que nos vamos arrepender”, diz Imaculada Kimbango.

Queixa contra o procurador Cambuta

Os advogados Zola Bambi e Mónica Domingos apresentaram um recurso hierárquico ao procurador-geral da República, general Hélder Pita Grós, contra o procurador José Rodrigues Cambuta.

Segundo os advogados, o procurador Cambuta violou os procedimentos básicos processuais, ao ter ordenado a detenção de Lucas Adolfo Gunza sem que o visado tivesse sido notificado antes de que pendia uma acção cível contra si.

Para os advogados, os factos arrolados contra Lucas Adolfo Gunza não constituem crime e não violam qualquer norma positiva. Ademais, reclamam também de o procurador Cambuta ter “escondido” o processo n.º 9394/17, para torná-lo inacessível aos advogados, entre outras irregularidades. Maka Angola

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